A arte fotográfica cabo-verdiana é o segredo mais bem guardado do nosso mundo artístico. Não é por acaso. Isto resulta de ela ser a disciplina artística mais ignorada e a mais desprezada de todas. Hélder Paz Monteiro é um dos segredos mais valiosos que esse segredo publicamente “esconde”. Esta entrevista é um contributo herético contra este status quo. (José Cunha)
1. À pergunta, “Quem é Hélder Paz Monteiro?” como é que responderias, em breves palavras?
Hélder Paz Monteiro, é pai do Heller e da Hellen, arquiteto e urbanista de formação e fotógrafo de coração. Fotografo para educar e desenvolver o olhar, ou seja, fotografo para aprender. Sou uma pessoa que adora ver o mundo através de um retângulo.
2. O retângulo fotográfico não é demasiado pequeno ou cabe lá o mundo inteiro?
Muito pelo contrário, dentro do retângulo cabe muita coisa. O mais difícil é saber o que devemos deixar fora, pois na maioria das vezes é o que deixamos fora que define os enquadramentos excecionais, fora do comum, onde as mensagens são mais fáceis de serem percebidas/entendidas.
3. Lembras-te de quando decidiste que a fotografia era a tua praia? Fala-nos desse momento inaugural, desse despertar para a fotografia.
Para falar verdade, acho que não aconteceu nenhum momento inaugural que me fez pensar que a fotografia era a minha praia. Lembro-me sim, de iniciar neste mundo da fotografia durante o período que estudava arquitetura e urbanismo no Rio de Janeiro. Sempre que fazíamos trabalhos de grupos na faculdade eu era designado o “fotógrafo”, e fazia as fotos, e só depois de as revelar é que víamos o resultado. Sim eu sou da época das câmaras analógicas e dos rolos fotográficos. Sou grato por viver essa época, pois tínhamos que, necessariamente, pensar antes de fotografar.
4. O que dizes leva-me a uma outra questão. A relação com o digital é muito diferente com o analógico? Quais são as principais diferenças, para além da óbvia, a financeira?
Não tenho dúvidas quanto a essa diferença. Hoje as coisas são muito mais fáceis, não há necessidade de estarmos a trocar de rolos fotográficos, de aguardar dias/horas para que as fotos fossem reveladas e podermos ver os resultados. Atualmente estes assuntos são solucionados na própria máquina, é tudo muito imediato, digo mesmo instantâneo. Hoje, fazem-se as fotos e quer-se ver as mesmas na hora e depois disso acabou. Tipo, deixam de existir. Eu costumo brincar dizendo para as pessoas (principalmente crianças) que a minha máquina não tem “deixa-me ver!”
5. Portanto, não foi uma epifania, mas uma descoberta gradual?
Sim, foi uma descoberta gradual, foi acontecendo em função das necessidades que surgiam. Além do mais, mesmo que eu quisesse sair para fotografar no Rio de Janeiro, isso não era possível pelas razões óbvias, insegurança. Depois que voltei para Cabo Verde é que realmente comecei a encarar a fotografia, doutra forma. Comecei a libertar-me da fotografia enquanto trabalho de faculdade e passei a fazer fotografia com um pensar mais artístico.
6. Estudaste fotografia ou és autodidata?
Gostaria de ter estudado fotografia, mas sou autodidata. O pouco que sei sobre fotografia aprendi fazendo, exercitando, treinando muito, vendo muitas fotografias, lendo sobre os grandes fotógrafos, conversando com outros fotógrafos, assistindo documentários sobre fotografias, indo a exposições, assistindo filmes e palestras, lendo livros e revistas que falam de fotografia, etc.
7. Qual a relação entre o fotógrafo e o arquiteto. É pacífica, natural, cúmplice?
Não é a primeira vez que me fazem essa pergunta e penso que vou responder da mesma forma. A relação é muito pacífica, natural e existe, sim, uma cumplicidade. O arquiteto/urbanista de alguma forma “rouba-me” mais tempo. Tenho que trabalhar, de certa forma estou muito mais condicionado tendo em conta, é claro, para quem estou a desenvolver o trabalho. O que já não acontece com a fotografia. Aqui tenho toda a liberdade do mundo para fazer aquilo que quero, quando quero e sem me preocupar se as pessoas vão ou não gostar daquilo que estou fazendo. Se gostarem ótimo, mas se não gostarem, ótimo na mesma. A minha preocupação não é entreter e agradar os outros, pois não me preocupo com isso. Mas uma coisa é certa, nem o arquiteto/urbanista atrapalha o fotógrafo, nem o contrário acontece.
8. Partilham o olhar, na forma como constróis e desconstróis o mundo ou são olhares diferentes sem pontos de contacto?
Penso que o olhar é algo essencial tanto para o arquiteto/urbanista quanto para o fotógrafo. Se não vejamos. O arquiteto/urbanista concebe algo que nem sequer existe, ele tem que ter essa capacidade, por assim dizer, de ver além. O fotógrafo, também tem que ter essa capacidade de ver além, caso contrário dificilmente ele irá conseguir fazer algo de diferente, interessante e original. Ou seja, sempre haverá contacto entre “os olhares” dos dois, e isso é natural e benéfico para ambos, sem qualquer dúvida.
9. A pergunta tem a ver com o modo como, parece-me, o arquiteto se faz presente na tua fotografia. Há sempre linhas, diagonais, ângulos, pontos de fuga, linhas de horizonte a pontuar os teus trabalhos. Estes aspetos que referi são do fotógrafo ou é, mesmo que inconscientemente, uma contaminação do olhar do arquiteto?
Sem sombra de dúvidas que isso é o lado do arquiteto que está e estará sempre presente em qualquer imagem que faço. O lado estético, o pensar antes de fotografar, por assim dizer, o fotografar mesmo sem a máquina, é algo de extrema importância para quem realmente gosta de fotografia.
10. E a tua relação com outros fotógrafos e arquitetos?
Infelizmente essa relação não é como eu desejaria que fosse, o que é uma pena, pois poderíamos aprender muito mais uns com os outros. Na nossa realidade impera a mentalidade “eu sou o melhor e não preciso de mais ninguém para fazer aquilo que faço”. É, cada um na sua e se achando o melhor que há. Vivemos naquilo que chamo de “zona da mediocridade”, ou seja, aprendemos a fazer as coisas de uma determinada forma e a partir dai só fazemos dessa forma, infelizmente.
11. Mas essas são as relações que não existem. Também queria que falasses das relações que existem, mesmo que virtuais, ou seja, com que fotógrafos e arquitetos dialogas mais (falo de influências)?
São poucos os fotógrafos daqui de Cabo Verde com quem tenho conversas acerca de fotografia, de projetos fotográficos, de ideias. Já falei algumas vezes com o Omar Camilo (Cubano), o Hélder Doca (São Vicente), o Hélder Dias (São Vicente), o Eneias Rodrigues (Santiago), o Cristiano Barbosa (Santiago), o Tó Gomes (Português), Alexander Manykin (Russo, que vive em Santiago), César Schofield (Santiago), David Gomes (Santigo) entre outros. Mas tenho que admitir que, falando de influências, infelizmente não posso afirmar com clareza que tive influência deste ou daquele. O mesmo acontece com a arquitetura. Refiro-me à questão de influências. Admito que há arquitetos cabo-verdianos que se destacam com algumas obras, mas nada que me faça dizer que tenha sido influenciado por eles.
12.Num país onde imperam as desigualdades sociais, que do ponto de vista urbano é o caos que se vê e arquitetonicamente são raríssimas as construções que merecem atenção, tudo isto seria matéria de sobra para arquitetos, urbanistas, paisagistas, engenheiros, artistas, intervirem ativamente. No entanto parece que não se passa nada. Nem críticas, nem debates, nem reflexões, nem denúncias. Como é que o técnico e o artista vêm este estado de coisas?
Na minha opinião, em determinada altura já houve criticas, debates, reflexões e denuncias, mas talvez não foram feitas por quem de direito e com a determinação que a situação realmente exige ou exigia.
Vivemos numa sociedade onde praticamente tudo é politizado. Reina a “mentalidade da boiada”, ou seja, ninguém está a fim de traçar os seus próprios rumos ou mesmo contestar os caminhos que alguns decidem que devemos seguir, basicamente pelos mesmos motivos: casa e alimentação. Ninguém quer perder a sua “casota e o seu ossinho” falando dessas coisas, que trazem sempre interligados, interesses outros.
Vou de certa forma tentar falar de dois exemplos que têm a ver comigo. O primeiro relaciona-se com minha área profissional, arquitetura e urbanismo. Sempre escuto os políticos falarem que existe um “problema de habitação social” em Cabo Verde. Eu discordo desta afirmação. Uma vez numa entrevista para a RTP expliquei porquê não concordava, e disse que na realidade “o problema é social de habitação”, que é algo muito mais abrangente e preocupante. Sabe o que aconteceu? Não passaram essa parte da entrevista alegando que isso poderia causar problemas aos governantes. O outro exemplo, relaciona-se com a fotografia. Tenho uma coleção de imagens, que é uma proposta para uma exposição, que denominei “(Gamboa) show antes do (David) Chow”. Fui apresentar essa proposta a uma instituição do estado encarregue de promover as artes e a cultura e sabe o que me disseram? Que eu tinha que, necessariamente, mudar o nome da exposição caso quisesse ter um possível patrocínio dessa mesma instituição, pois isso poderia interferir com questões outras relacionadas com a Câmara Municipal da Praia. Que outro nome dar a isto senão censura.
13. Pelo título, presumo que essa coleção lança um olhar crítico sobre o que se passa na Gamboa, certo? Será que ninguém vê o que está a ser feito com aquela praia? Diz-nos o que vê o fotógrafo, o arquiteto paisagista e o cidadão de tudo aquilo?
Quero com este título mostrar que a praia da Gamboa é muito linda, o show, exatamente como estava, antes da intervenção. Eu sou de Santo Antão, mas estou vivendo na Praia desde 1984, posso dizer que tenho muitas referências da infância que desapareceram ou vão desaparecer com a intervenção que acontece hoje nesta praia. Não tenho nada contra o desenvolvimento da cidade da Praia, muito pelo contrário. Mas o facto é que todas as cidades são, por assim dizer GLOCAIS, ou seja, têm características que são LOCAIS e outras que são GLOBAIS. O problema dessa intervenção, trazendo aspetos globais, como acham que estão a fazer, não dignifica necessariamente o lugar e nem tão pouco as pessoas que vivem nesta cidade. Muito pelo contrário. A forma “politizada” como este assunto foi decidido e resolvido, não vai de forma alguma beneficiar a população da cidade da Praia, isso é um facto. Em todos os sentidos, arquitetónico/urbanístico/ambiental, etc. É vergonhoso e criminoso aquilo que está sendo feito. Em relação ao fotógrafo, esse teve, felizmente, o privilégio de poder fotografar aquilo que era a Praia da Gamboa. Ou seja, as minhas imagens independentemente de terem o caracter artístico, passarão a ser consideradas documentais também. Hoje, não tenho vontade nenhuma de ir fotografar esse lugar, que para mim já foi mágico em termos fotográficos.
14. Não estou cá para concordar ou discordar das tuas opiniões, mas nos últimos 10 anos os únicos debates públicos cá na terra sobre estes temas, que acompanhei de perto, foi o da polémica proposta de intervenção no Éden Park, do Hamelberg e a censura aos quadros eróticos do Tchalé Figueira, e mesmo este esfumou-se em dois tempos. O que se passa na Gamboa, na Prainha, na Quebra Canela, na Cidadela, entre (muitos) outros lugares, são verdadeiros casos de polícia, mas ninguém protesta, ninguém diz nada. Qual debate? Onde a reflexão? Se tudo isto não é matéria de debate público, de indignação cívica e até de investigação policial, então o que é? Para que servem a Ordem dos Arquitetos e dos Engenheiros..?
Queria eu não estar de acordo com isto tudo que dizes, mas não há como. Quem deveria promover o debate dessas questões? A comunicação social? Mas esses, pelas razões óbvias não o fazem, pois são pagos pelo Estado e basicamente fazem aquilo que lhes é indicado, cobrir a agenda politica do governo. Quanto às Ordens dos Arquitetos e dos Engenheiros, parecendo que não, também fazem aquilo que o Governo espera deles, controlar de alguma forma o exercício da profissão e nada mais para além disto. Além do mais, recebem um subsídio do Estado e, portanto, não podem estar a “perturbar” o Governo. Eu já fiz parte da Direção da Ordem dos Arquitetos e já aconteceu, do Governo na altura, nos ter retirado o subsídio, que é atribuído a todas as Ordens profissionais. Achavam que estávamos a “perturbar”, e isso não era o papel que se esperava de uma Ordem, ao invés de ajudar o Governo por causa das intervenções que fazíamos. Penso que não preciso dizer mais nada!
15. Fala-nos das tuas influências. Quem são e de onde vêm (na arquitetura e na fotografia)?
Nunca me preocupei muito com isto de influências, mas uma coisa é certa, a boa arquitetura me influencia sempre, independentemente de quem a faz ou fez. Poderia enumerar um grande número de nomes de arquitetos famosos que na minha opinião fazem “boa arquitetura”, ou seja, fazem construção com um determinado propósito/função que dignifica quem fez os projetos, dignifica quem os executa, dignifica os lugares onde são construídos e que perduram no tempo.
O mesmo posso eu dizer em relação às influências na área da fotografia. Vejo muitas, mas muitas, fotografias diariamente e na maioria das vezes nem me preocupa quem as fez e sim o que fazem. Adoro fotografias que perduram no tempo, que deixam rastro. Não gosto de fotografias que não se destacam da massa, tipo fast-food.
16. Temos de separar o trigo do joio, caso contrário todo o mundo é artista como queria o Joseph Beuys. O que é uma boa fotografia e o que faz um bom fotógrafo?
Para mim uma boa fotografia tem que trazer necessariamente a intenção do fotografo e tem que estar subjacente uma expressão artística. Tal como qualquer outra arte, não tem que ter necessariamente uma mensagem explícita, nem um propósito interventivo. Se estes estiverem presentes, tanto melhor, mas a boa fotografia é, acima de tudo, uma representação externa do mundo interior do fotógrafo, ou, pelo menos, uma exteriorização da forma como este vê ou interpreta o mundo.
Quanto à outra pergunta “O que faz um bom fotógrafo?”, posso dizer o seguinte. Existem oportunidades na vida que favorecem as mentes preparadas, ou seja, um bom fotógrafo é aquele que tem a mente preparada, um olhar treinado/educado/desenvolvido que é capaz de olhar para o ordinário e ver o extraordinário, alguém que sabe ler, pensar e trabalhar as imagens. Um bom fotógrafo é aquele que tem muita sensibilidade na forma como olha e enxerga o mundo em que vivemos. Resumindo é alguém que sabe escutar com os olhos.
17. Como te relacionas, enquanto artista visual, com outras disciplinas, como o cinema, a literatura, as artes plásticas, a música..?
Penso que existe, e sempre existirá, uma relação muito direta entre essas disciplinas. Estão todas interligadas de alguma forma. Um fotografo famoso, o Sebastião Salgado certa vez disse o seguinte: “Você não fotografa com a sua máquina. Você fotografa com toda a sua cultura.”
Concordo com esta frase, muito embora pense que, não é pelo facto de se ter uma cultura enciclopédica, muitas formações e informações, ter lido muitos livros, visto muitos filmes, ter assistido a muitos concertos de música que se vai ser um excelente fotógrafo, mas que isso ajuda, lá isso ajuda, com certeza.
18. A presença da escrita nos teus trabalhos é uma constante, quase sempre de forma irónica, mas também, por vezes, poética, nomeadamente através dos títulos ou legendas ou títulos-legendas. Que importância têm esses textos? São ilustrativos, descritivos, complementares? Fazem parte indissociável das imagens, certo? Sente-se um gozo especial nessa relação? Fala-nos disso?
Costumo dizer que escrever não é para mim, prefiro mil vezes fazer fotografias. Respeito, e muito, as pessoas que têm essa facilidade/capacidade/competência para escrever e bem! No entanto, desde sempre fez parte do meu processo criativo, escrever qualquer coisa sobre as imagens que faço, nem que seja para escrever alguns parágrafos sobre o conceito ou mesmo para “dar” nomes às fotos. Nada mais do que isso. É qualquer coisa como quando nasce um filho ele terá necessariamente que ter um nome. Por isso há que ter muito cuidado, pois caso o nome não seja muito bem pensado, pode inclusive prejudicar ao invés de enaltecer. Mas tenho que admitir que isso me dá um gozo especial, apesar da dificuldade que tenho para escrever seja o que for.
19. Quando pequeno, como todos nós, tiraste as fotografias da praxe. Qual a memória mais antiga que guardas de fotógrafos e da fotografia cabo-verdiana?
Pouco ou quase nada posso falar disto, pois sou de Santo Antão e de uma época em que praticamente muito pouca gente tinha máquina fotográfica. Mas lembro-me que quando éramos fotografados, tínhamos que aguardar durante algum tempo, pois tinham que levar os rolos fotográficos para a ilha de São Vicente para serem revelados. Há, sim, um nome que me ficou na memória desde essa época, o Sr. Djibla, fotógrafo de Mindelo.
20. Qual o estado da fotografia em Cabo Verde? Se tivesses que fazer uma síntese o que dirias?
Na minha opinião, sempre existiu fotografia em Cabo Verde, mas não a fotografia enquanto arte. Há fotógrafos antigos que fizeram o que estava ao alcance deles na época em que viveram, muito embora pouca gente os conheça, o que é uma pena, pois perdem-se as referências.
Mesmo estando nós a viver numa época em que há uma proliferação da fotografia em todo mundo, continuamos com essa “lacuna”, em termos de valorização desta arte, pois muitos ainda continuam a pensar que a fotografia não tem tanta importância assim e erradamente pensam que qualquer um a pode fazer.
As outras artes sempre tiveram, e continuam a ter, mais relevância aqui em Cabo Verde, mas já há sinais de alguma mudança. Posso por exemplo justificar dizendo que por duas vezes fui nomeado, enquanto fotógrafo, na categoria “Cultura” no “Somos Cabo Verde – Os Melhores do Ano”.
21. Alguma vez foi diferente, ou foi sempre assim, uma coisa subvalorizada, para não dizer menosprezada, vista como utilitária, recreativa, mero hobby?
Se alguma vez foi diferente, não tenho essa informação, mas talvez por culpa nossa. Infelizmente, ela continua a ser subvalorizada e mesmo menosprezada, como diz e bem.
Falando por mim, tenho uma profissão e consequentemente tenho um sustento. Mas imagina quem não está na mesma situação que eu. É, com certeza, muito complicado conseguir sobreviver da fotografia.
22. Os fotógrafos não dialogam entre si, porquê? Não falam da sua obra, não discutem projetos, não trocam experiências, não partilham iniciativas. A que se deve este desinteresse mútuo e esta falta de dinamismo?
Voltamos de novo a falar da mentalidade que reina por estas bandas, ninguém quer sair da sua zona de conforto, cada um se acha melhor do que o outro e vai fazendo as coisas acontecer em função de expedientes/apoios que vai conseguindo.
Há que ter em conta, que a fotografia é feita para ser vista, e hoje existe essa possibilidade através das redes sociais, mesmo sabendo que existem outros meios para divulgar os trabalhos fotográficos. Mas aí entra-se na questão dos custos, ausência de incentivos/patrocínios de quem de direito. A grande verdade é que sempre se privilegiou outras artes nesta nossa terrinha natal.
23. Como é que se dá a volta a este estado de coisas?
Penso que a primeira coisa a se fazer é sairmos dessa zona de mediocridade reinante, desse isolamento em que vivemos, cada um por si, e nos juntarmos todos em defesa da mesma causa, a fotografia. Há espaço para todos.
Organizar eventos para divulgação da fotografia, como aconteceu há alguns anos atrás aqui em Santiago, PRAIA MOVE e MOSF (Mostra de Fotografia Contemporânea), onde, de certa forma, a fotografia contemporânea crioula foi cartaz, para se ver, sentir e apreciar.
Infelizmente, a fotografia enquanto arte é para todos, mas ao mesmo tempo ela não está ao alcance de todos. E para que isso aconteça ela tem de ser levada aos lugares próprios para esse fim, lugares esses que quase que não existem por essas bandas, refiro-me a lugares preparados para se fazerem exposições. Assim como se promovem “festivais de música” pelo país todo, deveriam as Câmaras Municipais, e outras entidades do Estado, promover festivais de fotografia nas várias ilhas.
Vivemos num país onde, por assim dizer, não há curadores de arte, não há pessoas qualificadas capazes de falar sobre aquilo que se faz aqui em Cabo Verde na área das artes em geral. Em se tratando de fotografia, pior ainda é a situação. Faz-se necessário a presença de curadores de arte. São poucos os colecionadores de arte no país, e talvez isso possa ser justificado pela ausência dos curadores, será?
24. Fico com a ideia de que em S. Vicente/Mindelo as coisas são muito mais organizadas e de que a dinâmica é outra. Das outras ilhas nem se fala.
Em São Vicente as coisas têm estado a funcionar melhor, porque eles se juntam em torno da mesma causa e quando assim é, tudo fica mais fácil. Todos os anos eles promovem atividades em torno de fotografia.
Infelizmente, que eu me lembro, uma das últimas e importantes tentativas de se agrupar os fotógrafos aqui em Santiago, aconteceu com o MOSF em 2009.
Claro está que, se já é difícil acontecer alguma atividade relacionado com fotografia nessas duas ilhas, Santiago e São Vicente, nas outras ilhas nem se fala.
25. Não há um instituto, um arquivo, um museu, concursos, mostras, debates, prémios (salvo a raríssima “exceção mindelense”), nem um site dedicado a esta disciplina, entre outras carências de vulto. Parece que a fotografia vive em estado de orfandade e abandono por parte do Estado, das autarquias, das instituições, do público, é como se não existisse. Qual a razão desta lamentável situação?
Muito possivelmente a resposta está no facto de ainda não existir um grupo de fotógrafos-artistas a produzirem fotografia enquanto arte, em quantidade e qualidade que chame a atenção dos governantes, dos autarcas e do público em geral. Enquanto não existir um modelo claro e cristalino de avaliação da fotografia enquanto arte, enquanto não existir o necessário vocabulário descritivo e técnico para a compreensão e avaliação de uma fotografia, muito dificilmente vai-se mudar o rumo desta lamentável situação. É, portanto, urgente e necessário educar as pessoas, dar-lhes conhecimento, motivá-los, capacitá-los, para que possam entender/compreender que existe fotografia enquanto arte. Organizar e promover regularmente eventos de fotografia em todas as ilhas do país é algo que também se faz necessário.
26. Governos, entidades, instituições e até particulares encomendam e/ou compram obras a artistas visuais, mas é raro, ou nunca, uns e outros encomendarem ou comprarem trabalhos a fotógrafos. De quem é a culpa? Deles, dos fotógrafos, de ambos?
Infelizmente não se encomenda ou compram trabalhos dos fotógrafos, porque em se tratando de fotografia todo mundo se acha capaz de a fazer. E para piorar as coisas, hoje ficou tudo mais fácil com o surgimento dos smartphones. Mas não acho que se deva atribuir culpa a ninguém, pois existe espaço para todos que gostam desta arte. Sempre haverá aqueles que vão conseguir ganhar algum dinheiro com o trabalho que fazem, e isso está intimamente relacionado com a qualidade do trabalho que realizam, ou seja, há que saber o que fazer, pois há os que sabem o que querem adquirir/comprar.
27. Como é (con)viver numa sociedade em que a resposta ao nosso trabalho é normalmente o silêncio?
Temos que necessariamente persistir naquilo que queremos e achamos melhor. Se as nossas espectativas são altas, não há crise. Temos é que criar os acessos/caminhos necessários para lá chegarmos. E como conseguimos isso? Trabalhando muito, sempre e sempre. Não há que ter pressa, afinal tudo acontece na hora que tem que ser.
28. No entanto, costumas ser requisitado pelas universidades para falar de fotografia. Para que público(s)? Com que objetivo? Com que resultados?
Além de algumas universidades, Universidade de Cabo Verde, Universidade de Santiago, Universidade Lusófona, Universidade Jean Piaget, já falei de fotografia em algumas escolas secundárias. Nas universidades falei para alunos dos cursos de artes visuais, comunicação e os de arquitetura.
O objetivo é sempre mostrar para eles que a fotografia é basicamente aquilo que vemos, e aquilo que vemos depende muito de quem somos. De certa forma, falamos de aspetos que eu considero importantes na fotografia, como por exemplo o olhar, treinar o olhar, educar o olhar, desenvolver o olhar, o ver, a leitura de imagem e como funciona esse processo. E complemento isso tudo mostrando para eles o “meu universo fotográfico”, meu processo criativo e, claro está, mostro sempre muitos trabalhos fotográficos por mim realizados e projetos ainda em andamento. Resumindo e concluindo, falamos e vemos muita fotografia.
Penso que de certa forma estou fazendo a minha parte, educando, explicando, mostrando para eles que, mais do que o equipamento e a capacidade técnica é preciso compreendermos o mecanismo da perceção humana e reconciliar a subjetividade e a objetividade na forma como olhamos o mundo, pois a fotografia representa a qualidade do nosso olhar.
29. Muita gente esquece-se que tirar uma fotografia não é só carregar num botão, mas todo o processo que antecipa esse momento e o que se lhe segue. O que sentes e como vês esta explosão da fotografia digital nas redes sociais onde toda a gente se sente “fotógrafo”?
Eu sempre digo que existe uma diferença entre o “tirar” e o “fazer” uma fotografia. O “tirar” uma fotografia é basicamente aquilo que todo mundo faz, sendo que não se acrescenta absolutamente nada. Já o “fazer” uma fotografia, exige necessariamente uma preocupação maior. Há que pensar antes de fotografar, pois na realidade está-se a acrescentar algo à imagem, está-se a criar uma “nova realidade” por assim dizer, a realidade do fotógrafo.
Essa explosão de fotógrafos é de certa forma benéfica, em função da diversidade e quantidade de fotos que são colocadas na net diariamente. Mas atenção, isso não significa que hoje temos, necessariamente, mais e melhores fotógrafos. Eventualmente temos sim, ao contrário de antigamente, é muito mais gente a colocar fotografias ruins na net.
E é importante que se diga que somos fotógrafos não pelas fotos que fazemos e sim pelas fotos que damos aos outros a possibilidade de ver.
30. A fotografia deixou de ser uma arte (privilégio de alguns) para passar a ser um passatempo (praticado por toda a gente)?
Penso que sim. Com a proliferação da tecnologia, é muito mais fácil as pessoas terem acesso e, consequentemente, fazerem fotografia enquanto passatempo, com a vantagem de poderem mostrar as fotos de forma instantânea. Não sei se eu me enquadro nesta categoria de fotógrafos, pois sou fotógrafo de coração, e talvez aí resida a diferença. Fotografo para aprender, para educar o olhar, para desenvolver o olhar. Importa dizer que a fotografia é a mais democrática das “artes”, qualquer um a pode praticar, mas nem todos a podem transformar em arte.
31. Como vês este paradoxo, em que esta aparente democratização da fotografia (toda a gente é fotógrafa/fotografia descartável) não parece ter feito as pessoas interessarem-se mais pela fotografia (pela arte fotográfica)?
Será que isto pode estar relacionado com a definição da arte fotográfica? Se não vejamos. Não existe um modelo claro e cristalino de avaliação da fotografia enquanto arte. Acho que falta o necessário vocabulário descritivo e técnico para a compreensão e avaliação da aparência de uma fotografia. Se a fotografia é para ser entendida como um meio de arte e comunicação, sempre e deliberadamente produtiva, com um significado no mesmo sentido da pintura, por exemplo, o que terá de acontecer é um maior e profundo conhecimento por parte do crítico, coisa que não temos em Cabo Verde, e do fotógrafo das inúmeras decisões que precedem a produção de uma imagem fotográfica, desde a parte concetual até ao lado mais técnico e mundano da imagem.
32. Abandonaste, espero bem que não, um dos teus temas preferidos, fotografar crianças, afinal, um tema histórico e universal. Porquê?
Adoro crianças, adoro estar no mundo delas e aprendo muito com elas. Tenho que admitir que ultimamente não tenho estado a fotografar crianças com a mesma frequência que fazia antes, mas não abandonei, muito embora cheguei a pensar nisso.
O motivo está relacionado com a questão dos direitos autorais, especificamente o direito à imagem, ou seja, o direito de quem está sendo fotografado e em se tratando de crianças fica tudo muito mais complicado. Infelizmente sabemos todos que o Direito é uma ciência humana, e como tal é passível de diversas interpretações e revisões.
Eu sempre tive/tenho uma preocupação para não expor as crianças em situações que as possam prejudicar. Costumo pedir autorização aos pais quando se faz necessário, costumo imprimir as fotos e levar aos pais dessas crianças, entre outras preocupações e mesmo assim há pessoas que fazem interpretações outras, e que me fazem pensar. Tenho eu que estar a discutir/brigar por causa de umas fotos? Será que vale a pena!? Muito sinceramente já cheguei a pensar em parar de fotografar crianças, e ou pessoas, e passar a fotografar os meus pés. Não quero com isto dizer que tenho pés bonitos ok (risos), mas não tenho que ter autorização, sei que me entendem.
33. A fotógrafa Nan Goldin pôs o dedo na ferida: “this puritanical new witch hunt over children and their sexuality”. Num país onde mulheres e crianças continuam a ser brutalizadas, abusadas e maltratadas, a fotografia e o fotógrafo passarem a ser os bodes expiatórios da hipocrisia social e política é intolerável?
Concordo em pleno com a fotógrafa Nan Goldin. Isto é intolerável. Certa vez estava eu com a minha máquina fotográfica, numa praça pública, fazendo algumas imagens e do nada apareceu um senhor a “brigar” comigo dizendo que era proibido fotografar crianças. Dizia ele que era crime e que não era certo aquilo que eu estava a fazer. E, claro está, chamou toda a atenção para mim. Eu tive, educadamente, que dizer ao senhor que as crianças eram minhas sobrinhas e ele ficou quieto. Entretanto, aconteceu logo de seguida uma outra cena, um adulto, provavelmente pai, a “bater” numa criança, e o referido senhor ficou quieto. Ou seja, crime é fotografar, mas bater/humilhar uma criança em público é culturalmente aceite sem qualquer problema. Contei isto para ilustrar um pouco aquilo que foi dito pela Nan Goldin.
34. Cá está mais um assunto que os fotógrafos, e não só, tinham o dever e a obrigação de debater, porque interfere diretamente com a vossa liberdade criativa e as vossas opções estéticas. E, no entanto, mais uma vez “no passa nada”. A tentação censória é grande e a pintura já foi, recentemente, alvo dela. Lá está, esse obscuro medo do poder das imagens. Não imagino ninguém a proibir um escritor de escrever sobre “temas tabús” (violência, pedofilia, prostituição, homossexualidade, you named…). Será que vocês fotógrafos preferem a autocensura, a dizerem basta? É aceitável serem tratados como potenciais criminosos?
Infelizmente somos tratados assim e acredito que muitos de nós, preferimos a autocensura para, de certa forma, evitar problemas e constrangimentos. Caso não houvesse esse modo de pensar, todos esses problemas seriam resolvidos de forma normal e educada. Mas as perguntas que ficam são estas: Haveria fotógrafos famosos caso tivessem todos eles que pedirem autorização antes de fazer qualquer fotografia? Eles andariam com declarações já prontas para as pessoas assinarem autorizando o uso das imagens? Haveria autorização somente para alguns fotógrafos?
Infelizmente, devido a estas questões todas, e praticando fotografia há mais de uma década, cheguei a uma conclusão muito simples: é-me mais fácil pedir desculpas do que autorização e espero que me entendam.
Em se tratando de questões de direito, há que ter em conta que nada é definitivo, ou seja, por ser uma ciência humana, sempre haverá diversas interpretações e revisões. Ou nos juntamos, como se fez em alguns países, para podermos exigir o direito dos criadores, ou então ficaremos sempre a mercê da interpretação de cada um.
35. Há aquele velho ditado que diz que “santos de casa não fazem milagres”. Sabe sempre a alguma ingratidão, ter-se mais sucesso fora de portas do que “em casa”, ser-se mais conhecido e apreciado lá fora do que na tua própria terra. Como é que isso te afeta se é que afeta?
Penso que isso não me afeta, apesar de ter a consciência que é a mais absoluta verdade este ditado “santos de casa não fazem milagres”. O mais importante para mim é saber o que quero com a fotografia, quais as minhas expectativas, independentemente do sucesso que possa vir daí, aqui, ou fora do país. Eu quero, e pretendo, ser conhecido enquanto autor nesta área da fotografia e sei muito bem que para isso tenho um percurso árduo pela frente e só depende de mim fazer ou não esse percurso.
36. Tens tido alguma reação do público?
Sim, tenho. São poucos os que reagem, mas são os que a mim interessam, ou seja, são poucos, mas bons. Hoje então, com as redes sociais, existe sempre a possibilidade de termos muitas mais reações que antigamente.
37. E dos teus colegas?
Deduzo que esteja a fazer referência a outros fotógrafos. Infelizmente não há tanta reação como eu acho que deveria e desejaria. Cada um vive no “seu mundo”, e na sua zona de conforto. Fica difícil alguém pronunciar-se em relação ao trabalho do outro. Acho mesmo que as pessoas não são sinceras, preferem aquelas criticas banais de sempre ao invés de uma crítica construtiva. Sem contar que às vezes falta a natural capacidade de pronunciamento de forma fundamentada.
38. E da comunicação social?
As vezes há que dizer aquilo que realmente tem de ser dito, salvaguardando muito poucas exceções, é claro! Na minha última exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS”, que aconteceu na cidade da Praia, no IILP de 7 a 18 de dezembro 2020, fizemos questão de organizar uma “abertura” somente para a comunicação social. Enviamos os convites com antecedência necessária a todos os meios de comunicação social, alguns até confirmaram presença. Sabe o que aconteceu? Simplesmente não apareceu ninguém. Penso eu que não preciso dizer absolutamente mais nada.
39. Da crítica nem é bom falar porque, simplesmente, não existe, certo?
Não existe e isto faz falta no nosso país. Melhor dizendo, se existe eu desconheço. Muito embora isso de “críticos”, às vezes é tipo “táxis”. Eles nos levam até onde temos dinheiro para pagar, salvo algumas exceções.
40. Apoios, estímulos, desafios, encomendas, deste e dos outros ministérios da cultura, de municípios, entidades???
Falando por mim, e sem entrar em muitos detalhes, absolutamente nada.
41. Tiveste alguma reação cá na “santa terrinha” da tua participação na exposição em Avintes?
Sim, houve uma reação ao qual aproveito a oportunidade para agradecer e muito, da parte da Televisão de Cabo Verde, do programa “Revista”, apresentado pela jornalista Matilde Dias. A reportagem que fizeram comigo acabou sendo noticia no telejornal da RTC. Uma vez mais aproveito para agradecer e muito.
42. Avintes foi, até agora, o ponto alto da tua carreira?
Penso que sim. Já tinha exposto no Brasil e em Portugal, mas nunca num Festival Internacional de Fotografia como foi o caso de “INSTANTES”, em Avintes, Portugal. Aproveito para informar que também fui selecionado para fazer parte deste evento em 2022, já que neste ano, 2021, o festival está direcionado somente para fotógrafas.
43. Cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. O que distingue esta exposição das outras e o que pretendeste mostrar ao público?
Eu não tenho dúvidas que esta exposição mostra o resultado deste constante “treinar/exercitar/educar” o olhar, algo que tenho como objetivo principal desde que entrei neste mundo fotográfico.
Como diz e bem, cada exposição tem vida própria e representa um momento tanto de exibição como de reflexão. Acrescento mais, mostra de certa forma o nosso evoluir, ou não, em termos fotográficos. Comparativamente com outras exposições, mesmo sendo suspeito para falar, sinto que um dos propósitos que sempre tive em conta é o de provocar as pessoas com as propostas que apresento. Acabou por acontecer também com esta exposição.
Eu nunca tive a pretensão de mudar as pessoas com as fotografias que faço, mas sim trazer alguma informação sobre este mundo através da fotografia, de mostrar que há formas outras de se fazer fotografia, independentemente dos gostos de cada um.
Como se pode constatar pelo nome que dei à esta exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS”, por si só já trás alguma informação. Afinal, vemos aquilo que estamos preparados e capacitados para ver.
44. Há um fio condutor que une os teus diferentes trabalhos ou não?
Penso que além da questão de sempre, tentar surpreender as pessoas, existe também uma preocupação, o tal “fio condutor”, em amadurecer as ideias, ou seja, não interessa fazer exposições simplesmente por fazer, não me interessa a quantidade. Tento sempre ser criativo, na medida do possível, pois para mim a dificuldade não é tanto ver o que ninguém viu, mas sim pensar o que ninguém pensou daquilo que todo mundo vê. Isto não é tão simples como muita gente erradamente pensa.
45. Tens trabalhado em algumas séries, como é o caso dos trabalhos desta exposição. É esse o teu método ou gostas mais da fotografia acidental e intuitiva?
Houve uma altura, no inicio desta minha jornada, em que a minha preocupação era sair à rua e fotografar e, consequentemente, as minhas fotografias refletiam esse caracter acidental e intuitivo, e isto faz parte do processo de aprendizagem. Hoje em dia interessa-me muito mais trabalhar com séries fotográficas. Uma ou outra fotografia boa, qualquer um pode fazer, mesmo que acidentalmente, o que não acontece quando trabalhamos com séries de imagens. E como resultado desta preocupação, hoje, posso dizer que tenho um trabalho muito mais consistente, a ponto de muitas vezes, ser eu identificado a partir de imagens por mim feitas.
46. A metáfora do fotógrafo como “caçador” de instantes assenta-te bem? Costumas esperar pelo “momento”, vais atrás ‘dele’ ou ambos?
Na verdade, as duas coisas funcionam para mim. Há situações em que vou sim à procura, mas há situações em que mesmo não estando preocupado acabo por fazer imagens com esse caracter de “caçador”, sem necessariamente estar à caça. As vezes, pura e simplesmente, temos que dar vazão ao nosso lado mais intuitivo, algumas imagens assim o exigem.
47. Toda a arte nasce de estímulos. Quais são os que mais te provocam e convocam? Qual o gatilho que te leva a criar (beleza, humor, ironia, humanismo, crítica, acaso, uma ideia…)?
Todos esses aspetos, beleza, humor, ironia, humanismo, crítica, acaso, uma ideia, provocam estímulos em mim na hora de criar. Costumo dizer que a minha motivação para a criatividade está relacionada com o PIB. Não o Produto Interno Bruto, mas sim com a Pressão do problema, tenho uma ideia e aquilo fica a “martelar-me” na cabeça durante algum tempo, a Irreverência, tento sempre ser diferente e o Bom humor, infelizmente, de mau humor não consigo criar absolutamente nada.
48. O que esperas quando mostras os teus trabalhos?
Tenho que admitir que houve uma altura nesta minha trajetória na área da fotografia em que eu me preocupava muito com o que os outros achavam, principalmente se gostavam ou não daquilo que eu fazia. Atualmente não tenho mais essa preocupação, o que realmente me interessa é mostrar para as pessoas que fotografias e máquinas fotográficas são meros instrumentos. Dependendo de quem segura a máquina fotográfica e o que fazem com ela, poderemos sim estar perante arte. Outra coisa que sempre quero mostrar é que, apesar de estarmos a viver em um mundo cheio de imagens, onde a maioria das imagens são consumidas tipo fast-food, ainda há quem se preocupa em fazer imagens com o intuito de deixar algum rastro, imagens que provocam a interpretação, o que, basicamente, é o que dá sentido às mesmas.
49. Como classificarias o teu olhar sobre o mundo atual (otimista, pessimista, obscuro, triste, alegre…)?
Muito sinceramente, acho que sou um otimista consciente. Acredito muito nas pessoas, gosto das pessoas e tento sempre entendê-las. Infelizmente estamos a viver tempos conturbados, segundo uns, por nós causado, mas espero que iremos ultrapassar esta fase menos boa.
50. Quais são os teus próximos projetos?
Neste momento quero levar esta exposição “A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS” para outros lugares aqui em Cabo Verde, assim consiga reunir as condições para tal.
Pretendo ainda levar ao público outras propostas, que estão prontas faz tempo. Costumo dizer que as minhas propostas fotográficas não têm prazo de validade.
51. Tens algum trabalho em curso?
Neste momento não tenho nada em curso, além do mais, devido a pandemia do Covid-19, não tenho fotografado tanto quanto desejaria, pelas razões óbvias. Mas assim que ultrapassarmos essa fase, voltarei com certeza ao meu treinamento constante, útil e necessário.
52. Como fotógrafo, o que te daria hoje mais prazer concretizar? Conta-nos um desejo secreto. O que é que gostarias que acontecesse, o que é que gostarias de fazer. Podes sonhar, até delirar, ainda não é proibido.
Isso até vai parecer um pouco estranho, mas é a mais pura verdade. Estou sem uma máquina fotográfica, há mais de 3 anos. Graças a bons amigos, tenho estado a fotografar de vez enquanto com as máquinas deles, emprestadas. Aproveito esta oportunidade para lhes agradecer, e muito. Pois é, o meu grande sonho, um desejo secreto, que agora deixa de o ser, é um dia ter uma máquina fotográfica profissional. Penso que neste momento, passados tantos anos a fotografar com máquinas amadoras e semiprofissionais, é chegado o momento de eu descobrir o que eventualmente posso fazer com uma profissional. O meu sonho é um dia ter uma CANON EOS 6D Mark II.
53. Nesta terra, “madrasta” para a fotografia, o que gostarias de ver mudar?
Muito gostaria que os “supostos entendedores de arte” desta nossa “madrasta terra” tivessem em mente que ser artista não tem que necessariamente ser somente alguém que canta ou que pinta. Atenção, não estou de forma alguma a retirar o mérito aos que realmente fazem arte nestas áreas. Há muita gente que não canta e que não pinta e que, no entanto, faz arte. Acreditem, merecem ser promovidos e incentivados também.
54. Tens uma divisa?
SER, FAZER, TER E COMPARTILHAR. Ou seja, ser FELIZ.
Escolhe:
três séries tuas, que te tenham dado mais gozo, e escolhe uma palavra para cada uma delas;
Vou ao invés de falar de séries falar de 3 exposições, por assim dizer, séries, que me deram mais gozo:
PRAIA GLOCAL, junho 2007: uma palavra, “Visão”
BLUE, junho e agosto 2012: uma palavra, “Doideira”
A (LUZ) QUE (NÃO) VEMOS, dezembro 2020: uma palavra “Olhar”
três imagens tuas que consideres insuperáveis? (anexa)
Muito sinceramente nunca pensei nisto e nem tenho essa preocupação, pois são tantas as imagens que eu fiz. Vou substituir a palavra ‘insuperável’, se me permite, por 3 imagens que me deram muito gozo fazer.
(Esta entrevista foi conduzida entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021)
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 709, de 01 de Abril de 2021