Por: Nilton Évora*
Há 26 anos como Enfermeiro do Sistema Nacional da Saúde de Cabo Verde, eu Nilton César Évora, trabalho na área hospitalar. Assim como outros profissionais de saúde Cabo-verdianos, e de outros países, de repente tivemos que adiar muitos projetos pessoais e laborais, para nos colocarmos diante da maior pandemia da história recente da humanidade. Durante vários meses estive na linha da frente, no combate à Covid-19, no Hospital Dr. Baptista de Sousa.
A enfermagem procura atender aos interesses e necessidades da profissão e do seu contexto social, e, para isso, tem produzido um corpo de conhecimentos próprios.
Antes do advento das teorias, a prática da enfermagem era desenvolvida com sua concepção paralela à execução. Há muitos anos começou-se a enfatizar o cuidado de enfermagem como processo interpessoal, focado na assistência holística à pessoa com necessidades.
Com isso as teorias de enfermagem, foram elaboradas para firmar as bases de uma ciência de enfermagem. Portanto, diante dos seus conceitos dos paradigmas, o enfermeiro é capaz de escolher a teoria mais adequada ao processo de cuidar.
Diante desta profissão abdiquei de muitas horas familiares, para que pudesse estar ao lado de uma equipa multidisciplinar, que tinha a obrigação de criar as condições necessárias, para enfrentar a pandemia na ilha de São Vicente. Juntos trabalhamos em prol de todos os nossos concidadãos com entrega, profissionalismo e humanismo.
No epicentro dessa catástrofe esteve também a minha pessoa. Como enfermeiro, e no meio às tamanhas adversidades, pude integrar com orgulho imenso; e demonstrando ainda mais as minhas competências, nomeadamente, as seguintes equipas de trabalho:
– Comissão de Luta contra a COVID 19 do HBS, (NIR) Núcleo de Intervenção Rápida;
– Equipa de avaliação de risco para profissionais de Saúde no âmbito da COVID-19;
– Equipa de colheita das primeiras amostras dos profissionais com contatos a casos positivos;
– Formador no Vestir e despir do EPI equipamento de proteção Individual no HBS;
– Coordenador da Comissão do Controle da Infeção Hospitalar;
– Pioneiro, juntamente com um colega Médico, na criação das primeiras viseiras em Cabo Verde;
– Confecção de máscaras, juntamente com outros profissionais;
– Enfermeiro de apoio no Transporte dos primeiros doentes da COVID-19 para o isolamento;
– Membro integrante na elaboração de muitos dos protocolos de combate à COVID-19 existentes no HBS; e
– Enfermeiro chefe do Serviço de Esterilização
Com esta sobrecarga de trabalho consegui resistir até finais do mês de Novembro de 2020, onde acabei por ficar doente por exaustão de trabalho e nível de estresse elevado, quase a instalar Síndrome de Burnout.
Perante este quadro estive a realizar tratamento no privado, pois, o sistema de consulta interno do HBS, levou-me à lista de espera.
Supressão carga de trabalho
Com o aconselhamento especializado foi-me recomendado suprimir a sobrecarga de trabalho, onde pedi a saída de todos as funções que vinha desempenhado excepto o de Enfermeiro Chefe de Esterilização.
Fi-lo por indicação clínica, e certo que seria o melhor para que todos os nossos doentes pudessem ter a cuidar de si alguém com plena capacidade, tal como sempre fiz até a exaustão me ter, infelizmente, “derrubado”.
Não abdico do juramento de dedicar a vida profissional ao serviço da humanidade, com responsabilidade, dedicação e conhecimento técnico-científico no cuidado e tratamento dos pacientes, só fui forçado a pedir uma “pausa” para recuperar.
Com o anúncio, e início da vacinação aos profissionais de saúde de Cabo Verde, fiquei feliz, de ver os meus colegas a serem vacinados, mas, com enorme desalento não fui comtemplado nos dois primeiros dias de vacinação.
Senti que fui colocado numa retaguarda, a onde o esforço e a dedicação de meses a fio, lutando contra este inimigo invisível, não contaram para quem toma estas decisões.
Renegado
Senti renegado para a segunda leva, ou seja segunda fase de vacinação de acordo com a circular nº7 /2021 no HBS, pois, neste momento, sou retaguarda no HBS, segundo avaliação precisa da Comissão de Vacinação do HBS, esquecendo aquele que esteve na linha da frente, em todos os momentos.
Eu estive presente, eu estive com os doentes quando havia medo, insegurança. Eu, e outros como eu, combatemos um inimigo invisível, insidioso, por isso perigoso, mas, na hora das prioridades de vacinação, não tiveram em conta a atividade assistencial explicita na circular interna acima referida.
Vejo que a Comissão de Vacinação do HBS, não se muniu de todas as ferramentas Cientificas fundamentadas para clarificar quem deve ser vacinado primeiro.
Temos os serviços de risco, e concordo com a especificação, mas nem todos os funcionários deste têm o mesmo grau de risco.
A evidência cientifica espelhadas nas diretrizes da OMS, na Centers for Disease Control and Prevention (CDC) European Centre for Disease Prevention (ECDC) é clara, não se vacina porque alguém acha que esse também deve ser vacinado agora.
A vacinação é uma prioridade dos profissionais de saúde, sim, mas com rigor nas prioridades. Abdico de qualquer análise nas outras estruturas de saúde.
Vacinas
Em tempo recorde, foram produzidas diversas vacinas, que representam a expertise de pesquisadores de todos os cantos do planeta, coligada a décadas de pesquisas e inovação tecnológica.
A expetativa pelo início da imunização da população traz também esperança. Assim sendo, o Governo de Cabo Verde envidou esforços em ter as primeiras remessas de Vacinas (Pfizer e AstraZeneca) para começar a imunizar a população, começando pelos que estiveram na linha da frente – Profissionais de Saúde.
Eu fiz parte desses que lutaram, senti na pele a exaustão de um trabalho, de uma dedicação com inúmeras horas, onde o meu pensamento percorria os meus doentes, as pessoas que pude ajudar, bem como todo aquele sentir que estava a honrar a ética da minha profissão, a honrar e lutar pelo meu País e a ter fé no acto da ciência, nunca descurando o amor e o humanismo, em cada rosto assustado por esta enorme pandemia.
Revolta
Com a liberdade de expressão que a Constituição da República de Cabo Verde me confere, deixo aqui meu grito de revolta na voz da retaguarda, para clarificação de memórias menos atentas e de injustiça na hora das prioridades à classe de enfermagem, e na atribuição daquilo que é mérito.
Não sou poeta nem profeta, mas como missionário deste sistema, quero dizer ao povo de Cabo Verde que continuo a confiar no Sistema Nacional de Saúde, mas, infelizmente, nem sempre os que estão na frente a executar cargos transitórios conseguem ter precisão da combinação do princípio da justiça e da evidência cientifica.
Ao terceiro dia da vacinação recebi a tão desejada vacina como profissional de saúde com comorbidade juntamente com outros profissionais que também trabalham no HBS, cuja a função até ao presente momento não é da linha da frente.
Nesse dia, vi que copeiras, cozinheiros, administrativos, condutores, técnicos biomédicos, estão sendo vacinados à frente de muitos colegas enfermeiros que fizeram parte das primeiras equipas no atendimento dos doentes de COVID.
Enquanto isso, continuarei a respeitar as recomendações da OMS, lavagem frequente das mãos, uso de máscara, e distanciamento social, o “ABC” que minimiza a propagação dessa terrível calamidade mundial. As medidas de prevenção são essenciais para que você e sua família se mantenham saudáveis.
Escrevo estas linhas para partilhar com os meus concidadãos, com todos os utentes, os doentes, e demais colegas, um pouco do que me esvazia a alma, um pouco daquilo que revisitei neste texto, como um percurso onde o poder decisório em matéria de vacinação, deixou esquecido nas prioridades quem tanto trabalhou como outros.
Estou certo que, se todos tivermos um pouco de reflexão, poderemos fazer evoluir a nossa capacidade de resposta e ganhar este desafio contra a COVID-19.
Quanto a mim, estive e estarei, sempre, na linha da frente pelos meus “irmãos” que precisarem de mim, neste e noutros momentos de angústia, ainda que, para outros, eu esteja na retaguarda, de onde vos escrevo este Grito de Revolta!
Tudo ficará bem!
*Enfermeiro