Mulher na Emigração, dirigente e activista sócio-cultural, Maria Ilena Rocha é filha de cabo-verdianos, nascida e criada em Nápoles, a cidade italiana “com múltiplas identidades históricas“. Arquitecta de formação, lembra do seu primeiro dia de aulas, numa Escola em que era “a única criança de origem imigrante e de pele negra“, pelo que, à distância desse ano de 1986, aconselha os mais novos a não deixarem que “os pensamentos dos outros turvem a vossa personalidade individual“.
Filha de pais cabo-verdianos, Maria Ilena Rocha – “Marilena”, para os mais chegados – nasceu e cresceu em Itália, mais precisamente, em Nápoles, uma cidade com múltiplas identidades históricas, cores e culturas, em alguns aspectos muito próximos da Cultura cabo-verdiana, do mar, do sol, do caos e das dificuldades sociais que talvez unam as grandes metrópoles.
Rocha destaca que como o Sul de Itália tem sido uma terra de forte imigração, sendo ela filha de cidadãos de origem cabo-verdiana, estrangeira, nem sempre foi fácil lidar com a situação.
“Lembro-me, com grande emoção, do ano de 1986, no meu primeiro dia de escola. Era a única criança de origem imigrante e a única de pele negra. Talvez seja, por isso, a minha sensibilidade para as crianças na luta constante contra qualquer forma de racismo ou discriminação“, conta, remarcando que o seu primeiro dia de aulas foi importante, não tanto para ela, mas para a mudança cultural que, mesmo numa forma lenta e indirecta, provocou no contexto escolar da realidade italiana.
Instada se é mais italiana/europeia ou cabo-verdiana/africana, contrapõe: “Esta pergunta já me foi feita muitas vezes. Hoje, sinto-me Maria Ilena, ou melhor: Marilena, como todos me chamam. A importância de ser si mesma, é um dos maiores desafios de hoje em dia. Somos, todos, constantemente projectados para ter que ser e esquecemo-nos de ser“.
O conselho – prossegue – que sempre dá, principalmente, para a comunidade cabo-verdiana, é não deixar que os pensamentos dos outros turvem a personalidade individual.
“Não permitam, jamais, que ninguém vos diga o que precisam fazer e como precisam se comportar. Tenham, sempre, o controlo da vossa própria vida, mesmo sendo emigrante”, salienta.
“Duas vidas…”
Comentando a tese de alguns teóricos, sustentando que os filhos de emigrantes “têm duas vidas: uma em casa; e outra na rua”, Rocha entende que isso pode ajudar a compreender melhor o problema vivido pelos filhos dos imigrantes.
“Os filhos de imigrantes, mesmo os cabo-verdianos, nascidos ou criados em Itália, não gozam do reconhecimento do ius soli, pelo que são duplamente penalizados por serem formalmente, rejeitados por um Estado que sentem e dizem pertencer”, aponta, reiterando que o imigrante menor, nascido no país de acolhimento ou que lá chega em tenra idade, vive, muitas vezes, “suspenso entre dois mundos e duas culturas”.
A disciplina e a Lei sobre a cidadania italiana estão, agora, abrangidas pela Lei 91/1992.
“De acordo com esta Lei, a cidadania italiana é adquirida pelo direito à nascença, apenas àqueles cujos pais (mesmo apenas o pai ou a mãe) são cidadãos italianos (Lei 91/1992, artigo 1.º, n.º 1, ponto a a). É o chamado método de aquisição da cidadania, através do ius sanguinis“, explicando que a segunda geração que nasceu em Itália, pode tornar-se cidadão, caso resida legal e continuamente até atingir a maiora idade e declare, no prazo de um ano, que quer adquirir a cidadania italiana.
Para Rocha, o não-reconhecimento automático de cidadania é um dos grandes obstáculos vividos pelos jovens que nasceram e/ou cresceram em Itália.
“Isto significa negar a realidade. É como se milhões de italianos não contasse para nada. Esta luta está muito perto do meu coração, porque nem todos tiveram a sorte e a facilidade de ser reconhecida/o cidadão italiano aos 18 anos”, manifesta, destacando que batalha, também, pelo alargamento do direito à cidadania, a par da eliminação das desigualdades sociais e políticas.
Ir além da “inclusão”
Itália acolhia – de acordo com os dados oficiais do ISTAT (Instituto Nacional de Estatística), a 31 de Dezembro de 2019, quatro mil 285 cabo-verdianos, dos cinco milhões 306 mil 548 estrangeiros residentes nesse País europeu.
A modos de avaliação, “Marilena” ressalta que a integração é um processo dinâmico e bilateral, requerendo, também, o esforço dos imigrantes.
“Em geral, os cabo-verdianos, especialmente na Cidade de Nápoles, não enfrentaram o elevado nível de discriminação, como os imigrantes de outras nacionalidades. Isso deve-se, certamente, à atitude honesta, trabalhadora, aberta e muito solidária, unida, especialmente, em tempos de dificuldades, marcadas pelas primeiras gerações“, avalia.
Para Rocha, nos tempos que correm, é necessário ir além do conceito de “integração”, substituindo-a por “inclusão” e “inter-acção”.
E avança: “A presença dos cabo-verdianos tinha uma forte visibilidade social e política, nos anos 80 e 90, altura em que as instituições e os italianos começaram a entender que o seu País tinha-se tornado um importador e não um exportador de trabalho migrante, como era tradicional“.
Para “uma boa integração e inter-acção“, esta activista entende que os imigrantes deve aproveitar as oportunidades que a Itália oferece, designadamente, nos diversos domínios da formação, atendendo a que se está “num mundo em constante movimento, onde as oportunidades de formação são infinitas“, exigindo-se “atitude, em relação ao seu crescimento“.
E salienta: “A importância da formação é essencial, para melhor enfrentarmos as mudanças do futuro, sem nunca pararmos“.
Travão às ameaças….
A discriminação de género, a xenofobia e o racismo são as três ameaças que afectam não só o indivíduo, mas toda a comunidade.
“O direito a uma vida digna é a base de cada sociedade, um direito universal e, certamente, não uma concessão que depende da arbitrariedade ou do poder de indivíduos ou grupos. Não temos uma única receita, mas todos concordamos que os decisores políticos, os professores e as famílias devem combinar os seus esforços para promover a igualdade e a não-discriminação , os pais devem estar associados às decisões escolares para promoverem a igualdade e a não-discriminação na Educação“, sustenta.
Rocha recorda, “com grande emoção“, do passado dia 7 de Outubro de 2020, altura em que o Presidente italiano, Sérgio Mattarella, por proposta do ministro do Interior, decretou a atribuição da Medalha de Ouro ao Valor Civil, em memória d o jovem Willy Monteiro Duarte – de ascendência cabo-verdiana, com raízes em São Nicolau -, “injustamente asassinado, por um bando de jovens“ dlinquentes.
“O caso chocou não só a nossa comunidade, mas todo o Mundo. Willy era um orgulho de jovem, descendente de uma família cabo-verdiana imigrante exemplar“, lembra.
Coragem e tenacidade
Maria Ilena Rocha é activista sócio-sindical e cultural e arquitecta de formação.
“O Sindicalismo completou a minha pessoa. Conciliar o trabalho com a própria vida pessoal pode parecer um problema, especialmente para as mulheres. A mulher que se sente realizada é aquela que ama e se sente amada, aquela que cede, na íntegra, também, aos seus afectos e à sociedade“, confessa, admitindo que os instrumentos para melhorar, conciliar a vida e o trabalho não são simples, mas devem e podem ser implementados.
Rocha apela a todos, Com relevo para as mulheres, de modo a terem “mais coragem para os encontrar e colocá-los em jogo, com força, coragem e tenacidade“.
Ao longo dos séculos, houve muitas protagonistas femininas, que revolucionaram o Mundo, no campo da política, da literatura, da arte e da ciência.
“O nosso passado, bem como o presente, está repleto de mulheres que ajudaram a escrever páginas importantes na História da Humanidade, em muitos casos, oferecendo a sua genialidade para o progresso social e cultural, lançando-se em empresas verdadeiramente imensas“, revela.
No rol das “mulheres-referências“, Rocha elege a sua “mãe e as mulheres cabo-verdianas em Nápoles (na Itália) “ e no Mundo, que, “de forma exemplar, foram capazes de mostrar coragem, sacrifício, espírito de altruísmo e grande força de vontade“.
A sua admiração vai, também, para muitas das que renunciaram a serem mães directas, por causa da imigração, mas que nunca fugiram às suas responsabilidades, especialmente às dos anos 70, que chegaram, maioritariamente sozinhas.
“Pensamos nas tempestades que enfrentaram, mas sempre com aquele espírito de positividade e amor pela sua família, pelos seus filhos, netos e pelas suas origens cabo-verdianas“, manifesta.
Na Itália, Rocha destaca o exemplo de “uma extraordinária cabo-verdiana, Maria José Mendes“, que, em 2001, o antigo Presidente Carlo Azeglio Ciampi, atribuíra-lhe distinção de “Cavaleiro da Ordem de Mérito da República Italiana”, um Prémio que, também, “marca o nosso orgulho, sentido de pertença e consciência da História das mulheres cabo-verdianas“ naquele País europeu.
Percurso sindical
Em 2009, Rocha foi eleita responsável Nacional de Mulheres Imigrantes (ANOLF), uma Colectividade que junta mais de 136 estruturas e escritórios estrangeiros em Itália, congregando mais de 450 mil membros.
Entretanto, o seu percurso associativo e sindical começou muito antes, em 2000, em Nápoles, numa iniciativa chamada de apoio às segundas gerações de cabo-verdianos.
“2009 marca a minha ascensão como coordenadora de Mulheres Imigrantes (ANOLF), levando-me a trabalhar na Sede Nacional, em Roma. Foi um grande reconhecimento. Na altura, com 30 anos, representou um grande momento, não escondendo a minha preocupação com a atribuição, que superou as minhas expectativas“, explica, realçando a sua “profunda sensibilidade“ pela problemática da imigração, a par da “protecção das mulheres, a qualquer forma de violência, discriminação e exploração“, lutando diária e tenazmente contra o medo e a intolerância.
Maior competência
Nas Eleições Legislativas de 2011, em Cabo Verde, aventurou-se pela Política, integrando a Lista do PAICV (Partido Africano da Independência de Cabo Verde), para candidata a deputada pela Europa.
“Nasci no meio da Política. Não porque alguém na minha casa, em Itália, estivesse directamente envolvido, mas porque, além da família italiana e da minha mãe, em casa falava-se sempre do que se passava fora, na sociedade, da política, de uma experiência forte e sólida. Sempre tive amizades e, especialmente, em família, preferências e escolhas políticas completamente diferentes , isto tem-me educado a respeitar, plenamente, as posições dos outros“, justifica, apontando que, enquanto minoria, sofreu, na pela, “alguma forma de discriminação“.
Malgrado esta situação, Ilena Rocha avalia que, anualmente, as mulheres têm-se revelado “mais competentes, conscientes das suas capacidades, corajosas, tenazes e ambiciosas“.
Em maré de COVID-19…
Falando da situação pandémica que assola a nossa Aldeia Global, Rocha entende que a primeira vaga de COVID-19 representou um choque muito forte para o mercado de trabalho, principalmente, aos imigrantes.
A ajuntar às dificuldades económicas, houve, também, as repercussões psicológicas. “As medidas de distanciamento físico, necessárias para conter as infecções estão, de facto, a atingir um preço elevado, em termos de dificuldades psicológicas, a curto e a longo prazo, para todos“, salienta.
Uma das primeiras intervenções de apoio aos carenciados, foi garantida pelos “amortecedores sociais“, atribuídos pelo Governo italiano, que apesar das várias controvérsias, tem salvaguardado, no entanto, uma parte dos jovens, mulheres e famílias inteiras, ou seja, das diferentes formas de fundo de segurança social, rendimentos de cidadania e de emergência, entre outros.
Dez meses após o aparecimento do COVID-19, Rocha defende a feitura de “um balanço da presença, para se perceber como e quanto mudou a nossa existência“.
E remarca: “A quarentena forçou-nos a redescobrir o altruísmo, a civilização do condomínio e a centralidade do Estado. O Património da Saúde Pública, da ciência, da saúde, da investigação e da importância dos subsídios – se usado com razão! -, talvez, demasiado desvalorizado e pouco encorajado“.
Privacidade
Há anos que “Marilena“ está envolvida em associações e comunidades, promovendo actividades de solidariedade, de modo reservado.
“A privacidade das pessoas é fundamental e a dignidade nunca deve ser utilizada na publicitação. No período da Pandemia, como associação e comunidade, demos o nosso contributo para Cabo Verde, enfatizando a nossa escolha de não querer publicações de imagem dos beneficiários, menores e de mulheres em dificuldades“, revela, lamentando que inúmeras “iniciativas de caridade nem sempre são claras“, pelo que “devem ser seriamente monitorizadas e avaliadas“, antes de serem publicitadas.
Nesses tempos pandémicos, Rocha defende que a distância física jamais deve ser desculpa para não se participar na vida social.
E remata: “A minha mensagem vai para as próximas gerações, em ordem a serem actores positivos e exemplares na sociedade onde vivem, sem nunca esquecerem as suas origens, uma vez que uma árvore não cresce sem as suas raízes“.
(Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 693, de 10 de Dezembro de 2020)