Por: Josep Borrell*
Em 2021, queremos dar novo impulso à parceria entre a União Europeia e África. Essa parceria não deverá, contudo, limitarse à esfera económica ou política: a cultura e os intercâmbios culturais deverão passar a ser um dos seus elementos essenciais.
A cultura está tão presente nas nossas vidas que, muitas vezes, se torna invisível. Música, dança, cinema, televisão, artes plásticas, literatura, teatro ou ainda gastronomia são atividades que alimentam o nosso imaginário e, ao mesmo tempo, marcam o ritmo do nosso quotidiano.
A cultura está também no cerne da nossa identidade. Ao forjar estéticas, referências e narrativas comuns, a cultura viva e também o património cultural, material e imaterial definem a nossa pertença ao mundo e a nossa relação com ele.
A cultura, importante recurso económico
A cultura é também um recurso económico importante. A indústria criativa, o design e o cinema são setores que geram emprego e rendimentos. O património arqueológico e os museus atraem o turismo, que, por sua vez, incentiva o desenvolvimento de atividades como fabrico de recordações artesanais, hotelaria, guias e acompanhantes…
O apoio a este setor é tanto mais necessário agora que estas atividades foram duramente atingidas em África e na Europa pela crise da COVID19.
Mas o apanágio das culturas é também misturaremse com outras culturas para se enriquecerem. A esse título, o contributo de África e das suas diásporas para a cultura mundial é considerável. Não haveria música pop, R&B, jazz, blues, rock, funk, disco, salsa, reggae ou ainda rap sem o património musical africano e afrodescendente. Esta observação estendese igualmente à proliferação das outras artes.
Para além destas constatações, perfilho também da opinião daqueles que creem que a cultura deve ser parte integrante da resposta aos desafios de política externa, quer se trate de crises sanitárias, de conflitos, quer ainda de ameaças relacionadas com as alterações climáticas.
A cultura, resposta aos desafios de política externa
Uma vez que toca o coração das pessoas, naquilo que têm simultaneamente de mais singular mas também de mais universal, a cultura pode efetivamente contribuir para que se encontrem soluções caso os instrumentos políticos tradicionais não consigam fazêlo. A cultura permite veicular valores – como o respeito pelos direitos humanos ou o Estado de direito –, suscitar reflexos de humanidade, solidariedade e entreajuda, promover comportamentos protetores face aos perigos.
A preservação do património cultural pode também contribuir para a (re)construção de uma identidade cívica e de uma nação. A União Europeia está, por exemplo, a trabalhar com a UNESCO no Mali para salvaguardar os mausoléus e manuscritos do império maliano ameaçados pelos jiadistas. No Níger e no Burquina Faso, apoiamos numerosos projetos destinados a reforçar a cidadania e a solidariedade graças a coproduções artísticas entre jovens de ambos os países, uma vez que a resposta ao terrorismo passa inevitavelmente pelo reforço da educação e pelo respeito das culturas. A União Europeia está também a lutar contra o tráfico ilícito de objetos de arte a que se dedica o terrorismo internacional, que pilha museus e sítios arqueológicos para financiar os seus atentados, privando as populações da sua memória e da sua riqueza cultural.
Outro exemplo de apoio europeu às indústrias culturais em África é o Festival PanAfricano de Cinema e Televisão de Uagadugu (FESPACO). Desde há cerca de 50 anos, o FESPACO tem vindo a afirmarse como uma das principais montras de promoção do cinema africano no mercado internacional. Através do seu programa “Ethical Fashion” (Moda Ética), a UE também forma e apetrecha mais de 10 000 artesãos a fim de, em seguida, trabalharem para grandes marcas internacionais de costura inspirandose nos seus modelos tradicionais. Há outros programas que abrangem um leque diversificado de ações, como apoio à produção e divulgação, organização de ações de formação, acesso ao microcrédito ou apoio ao empreendedorismo cultural.
O laboratório “Youth Hub” (Plataforma para a Juventude) e o projeto MAISHA
Em menor escala, o laboratório “Youth Hub”, criado pela União Africana e pela União Europeia, permitiu, nos últimos anos, que jovens de ambos os continentes se reunissem e formulassem propostas concretas para reforçar a parceria entre a Europa e África. Imbuído do mesmo espírito, foi lançado há dois anos o projeto Maisha, uma experiência inédita de cocriação musical europeia e africana que reuniu 12 músicos de ambos os continentes. Deste encontro nasceram músicas originais que foram interpretadas num concerto público de comemoração do Dia da Europa e da fundação da União Africana realizado pela primeira vez em Adis Abeba, em 2019, e depois em formato virtual, em 2020.
Neste início de 2021 que assinala também o início de uma nova década, o meu voto é que consigamos criar com os nossos EstadosMembros verdadeiros “centros europeus de cultura”, ou seja, espaços que, tal como os institutos nacionais de cultura, abram em países parceiros a fim de divulgar tanto as culturas europeias como as dos países de acolhimento e, ao mesmo tempo, incentivar o diálogo entre ambas. Esta dinâmica está já em andamento, mas é meu desejo que seja reforçada.
Tal como gostaria que os intercâmbios de pessoas se intensificassem. Graças ao programa Erasmus+, desde 2014 efetuaramse mais de 26 000 intercâmbios entre a Europa e África. Queremos ir mais longe e fazer com que pelo menos 105 000 estudantes africanos beneficiem de um programa de mobilidade até 2027.
Estes exemplos mostram que a cultura pode e deve desempenhar um papel significativo na parceria entre a Europa e África que queremos redesenhar. “Arte, cultura e património, alavancas para a construção da África que desejamos”, tema escolhido pela União Africana para 2021, abre, a este título, belas perspetivas.
*Alto Representante da União Europeia para a Política Externa e Política de Segurança,
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 699, de 21 de Janeiro de 2021