Por: Faustino Vicente *
Presenciamos uma cena num supermercado que nos levou a uma reflexão sobre a validade temporária do espírito natalino. Estávamos na fila de um caixa e na nossa frente um garoto que, ao pedir que lhe desse dinheiro para pagar o pacote de açúcar e de café, que trazia nas mãos, teve a sua iniciativa bruscamente interrompida.
Ato contínuo, ao seu pedido, surgiu um segurança bem trajado, boa aparência pessoal e avantajada compleição física que, inclinando-se para o garoto, disparou a seguinte frase: “você tem trinta segundos para cair fora da loja…29,28,27…”.Assustado, o garoto largou as mercadorias e saiu em disparada.
Essa foi a constrangedora cena protagonizada por um garoto pobre e um segurança despreparado profissionalmente. No exato momento nos veio a mente o pensamento do pacifista indiano Mahatma Gandhi (1869-1948), que dizia – “a pobreza é a mais cruel das violências”.
Mesmo que o garoto estivesse simulando uma eventual compra, apenas para comover as pessoas a lhe dar dinheiro, a orientação da empresa poderia ser outra. Acreditamos que o segurança agiu por pura ignorância, que o dicionário conceitua como: “Ausência de conhecimento, falta de saber, condição de quem não é instruído. Estado de quem ignora ou desconhece alguma coisa, não tem conhecimento dela.”
Foi exatamente o que o funcionário demonstrou não ter, conhecimento dos mais elementares princípios de respeito ao ser humano, de cidadania e da essência dos programas de responsabilidade social, cujos resultados têm sido eficazes. Cabe as empresas capacitar à todos os seus dirigentes e funcionários, á dar soluções adequadas à cada uma das situações similares a presenciada por nós.
A inadequada atitude do segurança pode ter incentivado no garoto o espírito de revolta contra a sociedade.
Participar de ONGs, como voluntário em projetos de responsabilidade social do Terceiro Setor, é uma das formas disponíveis para a redução da cruel desigualdade social existente hoje no mundo. Será no relacionamento interpessoal do dia-a-dia que vamos revelar se, realmente, estamos exercitando o mais nobre dos sentimentos – o amor ao próximo.
Na família, na escola, no trabalho e nas nossas atividades recreativas, esportivas e sociais temos inúmeras oportunidades de demonstrar a nossa responsabilidade social (individual) tratando as pessoas como gostamos de ser tratados – como seres humanos.
Cabe ao Primeiro Setor – poder público – a responsabilidade maior de diminuir o abismo existente entre a ilha de ricos e o oceano de pobres, desenvolvendo políticas públicas que levem educação e saúde de excelente qualidade à todos os cidadãos. A elevadíssima carga tributária e as altíssimas taxas de juros bancários, embutidas nos preços dos produtos, são os mais vorazes predadores do poder aquisitivo das pessoas assalariadas.
O Segundo Setor – iniciativa privada – tem, na manutenção de um clima organizacional prazeroso, a oportunidade de demonstrar o seu respeito aos funcionários através do estilo de liderança compartilhada, programas de incentivos motivacionais, sistema de comunicação interativa, oportunidades de carreiras e salários compatíveis com a função. O comportamento ético da classe empresarial poderá minar o mais poderoso império do planeta – o Quarto Setor.
O “faturamento” das atividades da chamada – informalidade – representa o maior “PIB” do mundo. O tão famigerado CD pirata é apenas a ponta do iceberg de uma gigantesca “nuvem” financeira que gravita em torno da terra semeando desemprego informal, sonegação de impostos e operações comercias com elevado grau de ilicitude.
A cena de discriminação ocorrida no supermercado nos leva à concluir que Albert Einstein (1879-1955) tinha razão: “é mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito.”
A nossa esperança é que, a (curta) temporada de espírito natalino em dezembro, agregue valores não materiais ao nosso cotidiano.
* Faustino Vicente – Consultor de Empresas e de Órgãos Públicos, Professor e Advogado – e-mail: faustino.vicente@uol.com.br – Jundiaí (Terra da Uva) – São Paulo – Brasil
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 698, de 14 de Janeiro de 2021