Tal como outros sectores da vida, a cultura ressentiu-se de modo profundo em 2020. A covid-19 ditou o confinamento, retirando os palcos da rua. Ano de pouca produção musical e editorial, várias são as vozes que se calaram, mas cujas obras deverão perdurar no tempo: Kaká Barboza, Jorge Neto, Celina Pereira… mas também Teobaldo Virgínio, Moacyr Rodrigues, entre outros. No campo da produção musical há que destacar o regresso de Boy G. Mendes.
O carnaval em Fevereiro marcou o fim das actividades culturais com aglomeração popular. Os dias, semanas e meses seguintes ficaram ensombrados pela covid-19. Na sequência da pandemia, as actividades culturais foram interditadas e a generalidade dos artistas conheceram sérias dificuldades de sobrevivência. Não é por isso de estranhar a escassa produção editorial, tanto na música como na literatura, neste 2020 que ora termina.
Em alternativa, e após muitas “queixas”, a solução passou por actuações “on-line”, via internet, para “entreter” o público confinado em casa. Ou então espectáculos limitados, como aconteceu com o Mindelact, em São Vicente. A ideia das “lives” se expandiu às diversas áreas e não faltaram concertos, actuações de teatro, conferências e até lançamento de livros para se assistir a partir de casa.
Cinema – Primeira lei aprovada “com sucesso”
Neste ano atípico, o Cinema Cabo-verdiano viu aprovada a primeira lei do sector, que visa salvaguardar os direitos dos autores e dos produtores de obras cinematográficas e audiovisuais, bem como dos artistas, intérpretes entre outras “personagens do mundo cinematográfico”. A lei foi aprovada, pelo Conselho de Ministros, no dia 11 de Junho de 2020 e supostamente responde a uma velha reivindicação dos cineastas nacionais.
Vitalina Varela
E por falar em cinema, “Vitalina Varela”, filme do português Pedro Costa, baseado na história da cabo-verdiana Vitalina Varela, conheceu ao longo deste 2020 um sucesso raro em vários festivais da Europa e termina o ano indicado para o Óscar do Melhor Filme Estrangeiro. Nos EUA.
Residente no Bairro das Fontaínhas, Lisboa, Portugal, Vitalina Varela é uma cabo-verdiana de 55 anos, que vem do filme “Cavalo Dinheiro”, realizado também por Pedro Costa, em 2014. Vive vários anos à espera de poder se juntar ao marido em Portugal, mas quando isso acontece o marido morre…
Silêncio…
A 20 de Fevereiro morreu, em Lisboa, Jorge Neto, considerado um dos cantores mais populares de Cabo Verde. O vocalista do lendário grupo “Livity” tinha 55 anos, vítima de um duplo Acidente Vascular Cerebral (AVC), após meses internado num hospital da capital portuguesa.
Filho de mãe cabo-verdiana, Jorge Neto nasceu em São Tomé e Príncipe em 1964. Fez os estudos secundários em Portugal e, para fugir ao serviço militar obrigatório, emigrou para a Holanda. O seu estilo único de actuar, cantar e dançar permanece, com certeza, na memória dos seus fãs cabo-verdianos e não só – Jorge Neto era também muito apreciado em Angola, Moçambique e vários outros lugares.
Vozes que se calam
Kaká Barbosa
No mesmo dia em que completou os seus 73 anos – 1 de Maio – , o músico, escritor, compositor e político, Kaká Barbosa deixou o mundo dos vivos.
José Carlos Barbosa, “Kaká Barbosa”, nasceu em São Vicente, mas viveu toda a infância e juventude em Santa Catarina, Assomada – vivência essa que viria a influenciar a sua identidade artística. O seu contributo para a Cultura de Cabo Verde foi reconhecido há vários anos. O último “reconhecimento” foi na “Grande Gala” de homenagem que recebeu da Sociedade Cabo-verdiana de Autores (SOCA) juntamente com Princezito na Assembleia Nacional.
Celina Pereira
Quase a fechar o ano de 2020, calou-se também a voz da artista e contadora de estórias Celina Pereira, vítima de doença prolongada, em Portugal. Curiosamente, morreu na mesma data em que faleceu Cesária Évora – 17 de Dezembro, mas de 2011.
Celina Pereira nasceu na Ilha da Boa Vista, mas seguiu, ainda criança, para São Vicente, para onde a família foi morar. Lançou o seu primeiro “single” em 1979, e, quatro anos depois, o seu primeiro LP – “Long Play”, baptizado de “Força di Cretcheu”. De lá para cá, foram muitos discos, “singles”, livros e áudio-livros lançados. Tem trabalhos produzidos com a parceria de artistas brasileiros, moçambicanos e portugueses.
Celina Pereira foi uma da primeiras, senão a primeira, a propor a elevação da morna a Património Imaterial Nacional e Mundial quando, em 2011, enviou ao Governo de Cabo Verde uma Petição na qual apontou o papel “aglutinador” do mais conhecido género musical cabo-verdiano, sublinhando as suas potencialidades como “valor universal”. “A sereia Mánina e os seus sapatos vermelhos”, datado de 2018, é um dos seus mais recentes áudio-livros, e que, de certeza, jamais será esquecido pela pequenada.
Este foi de perdas também para as letras e investigação das nossas tradições.
Na literatura houve também, neste mês de Dezembro, a perda de Teobaldo Virgínio, aos 96 anos. Poeta, contista e romancista, autor de vários livros e há muito radicado nos EUA, decano das letras cabo-verdianas, o autor de “Distância” começou a publicar em 1962.
Uma outra perda, neste caso há uma semana, é a de Moacyr Rodrigues, conhecido professor e investigador da música e outras manifestações do folclore cabo-verdiano, nomeadamente, carnaval de São Vicente, festas de romarias de Santo Antão… Tinha 87 anos e era para muitos uma biblioteca viva.
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Património histórico…
Este ano ficou também marcado pela reabilitação e recuperação de edifícios históricos, culturais e religiosos, por parte do Governo. Objectivo: alavancar o turismo religioso no país e ajudar na requalificação e no embelezamento das localidades onde esses monumentos estão inseridos.
Neste sentido, foram reabilitadas algumas igrejas, com realce para a de Nossa Senhora do Rosário, a mais antiga de Cabo Verde, construída na Cidade Velha, cerca de 30 anos depois da descoberta do arquipélago.
Foram contempladas também neste âmbito as igrejas de São Tiago Maior – situada na Achada Igreja, em Santa Cruz, construída em meados do século XVIII, e a Igreja de Nossa Senhora da Luz, em Alcatraz, São Domingos, um dos patrimónios nacionais.
Música
O ano de 2020 fica marcado pelo regresso, 21 anos depois, de Boy G. Mendes, com o lançamento de “Bate Tempu”. Boy Gé Mendes continua numa linha musical muito sua, onde a fusão dos ritmos e influências do mundo são uma constante. Este novo disco é, pois, um prolongar de sucessos como “Grito di Bo Fidje”, “Djunta ma Nos”, “Joia” e “Noite de Morabeza”.
Quem também está a relançar a sua carreira é Bela, a voz de “Bô é Nha Môr”. No seu caso, o regresso acontece 13 anos depois. Natural do Tarrafal de Santiago, a residir no estrangeiro, Bela diz-se determinada a “reconquistar” o sucesso que iniciou em 2002, com o lançamento de “Bo ê nha mor”.
Prémio Arnaldo França 2020 foi para Jorge Soares
O escritor cabo-verdiano Jorge Soares Silva foi o vencedor do Prémio Literário Arnaldo França de 2020, com a obra “Mundo”, a retratar a vivência da diáspora cabo-verdiana em Angola. Este prémio é atribuído pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, de Portugal, em parceria com a Imprensa Nacional de Cabo Verde.
O júri constituído pelo escritor Germano Almeida, a editora-chefe da Imprensa Nacional, Paula Mendes, e o jornalista e académico Daniel Medina, justificou a escolha, considerando o “Mundo” de Jorge Soares como “um texto que refere com consistência a vivência do homem cabo-verdiano quer em Cabo Verde quer na diáspora, neste caso Angola, porém de uma forma leve, alegre e bem humorada, características normalmente ausentes da literatura cabo-verdiana”.
Teatro
“O cheiro dos velhos”, de Caplan Neves, venceu a segunda edição do Concurso Nacional de Dramaturgia, promovido pelo Centro Cultural Português (CCP) na Praia e no Mindelo, em parceria com a Associação Artística e Cultural Mindelact. O texto também já foi encenado pelo Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, em 2020, tornando-se assim na 60ª produção do grupo. O espetáculo teve a sua estreia no passado mês de Outubro, na cidade do Porto, em Portugal. Em Cabo Verde foi apresentado pela primeira vez, em Novembro, no Mindelac mas já viajou também à Cidade da Praia.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 696, de 31 de Dezembro de 2020