PUB

Convidados

“Na noz zona, di noz manera i ritmo”: RACMS e novas formas de ativismo juvenil e comunitário na cidade da Praia

Por: Redy Wilson Lima

A Rede de Associações Comunitárias e Movimentos Sociais surge, na Praia, durante a crise pandémica da covid-19, enquanto movimento de solidariedade comunitária fora das esferas institucionais, com o objetivo de responder as falhas estruturais verificadas no sistema de proteção social com a implementação das medidas sociais de proteção às famílias em situação de maior vulnerabilidade.

Com uma forte presença nas redes sociais e focado na comunidade diaspórica, a iniciativa possibilitou uma melhor comunicação e articulação entre as entidades públicas e privadas no terreno, visto que as iniciativas solidárias funcionavam de forma desarticulada e fragmentada. Organizado em rede, serviram de suporte de execução das medidas de assistência pública, mas também agiram de forma autónoma não só na assistência, como na sensibilização, orientação, mapeamento e cuidados.

Num relatório apresentado em julho declararam ter distribuído aproximadamente 9.000 cestas básicas, das quais 44,4% foram por iniciativa própria, atingindo cerca de 7.000 famílias, num total de cerca de 25.000 pessoas. Igualmente, inscreveram no pré-Cadastro Social Único, condição de acesso do rendimento solidário, rendimento social de inclusão e assistência alimentar, cerca de 1.630 pessoas. Ao todo, movimentaram durante o período do Estado de Emergência cerca de quatro milhões e quatrocentos mil escudos.

Com Jandira de Barros, num texto escrito em abril, chamamos a atenção para o perigo de perenizar o “espírito de ajuda”, vigorado num contexto de exceção, como estratégia coletiva permanente, colocando assim a caridade no lugar do direito e a transformação destas organizações como meros executores objetos de interesses eleitoralistas de partidos políticos ou de organizações sociais e empresariais de matriz neocolonial.

Esta foi, de resto, uma das preocupações discutidas no primeiro encontro presencial do movimento realizado na Kaza di Amizadi, em Safende. Dali saiu o compromisso de se continuar a trabalhar em rede e de forma organizada, enquanto estratégia política e de unidade, assim como ser voz ativa em prol do bem-estar comunitário e urbano. O espírito de luta pela justiça social foi destacado a partir do lema “sem justiça não há paz”.

Esta estratégia foi executada na discussão com a CMP no âmbito da elaboração do Plano de Acão do Plano Estratégico Municipal de Desenvolvimento Sustentável, promovido pela PNUD e financiado pela Cooperação do Luxemburgo. Nesse encontro, numa negociação intensa com a máquina camarária, impuseram a lógica na noz zona, di noz manera i ritmu, conquistando parte de financiamento com vista ao reforço das organizações sociais de base comunitárias e mapeamento de pelo menos 15 bairros da cidade.

Nos últimos meses o grupo tem estado bastante ativo na denúncia da violência e negligência política, assim como promovendo ações de djunta-mon transcomunitário em datas comemorativas específicas. Nos dois últimos encontros, em Alto da Glória e Eugénio Lima respetivamente, comprometeu-se a passar da teoria à prática daquilo que foi designado de política comunitária. Se autodefiniu como um coletivo de ação social e política apartidária de caráter transcomunitário e interdisciplinar, cujo princípio fundamental é a unidade na diversidade e a promoção de uma liderança partilhada de ação colaborativa.

De ponto de vista analítico, é um tipo de ação comunitária que veio consolidar e sofisticar um dos seis tipos de protestos públicos emergentes a partir de 2005 e que designei como ativismo comunitário e ocupações de territórios e equipamentos públicos abandonados. Os outros são: a consolidação do rap como uma importante ferramenta de contestação; a emergência de petições públicas e do ativismo cibernético; o reaparecimento de manifestações culturais de cariz afrocêntrica e/ou pan-africana, com um forte componente de protesto simbólico; protestos de rua mobilizados através das redes sociais.

Liderado por jovens, até ao momento, este coletivo tem conseguido contornar os problemas que encurralaram as iniciativas anteriores: a incapacidade de criação de uma agenda identitária, social e política comum derivado de uma certa dose de protagonismo associativo e cegueira ideológica (ou ausência ideológica). Por outro lado, passou o teste de tentativa de instrumentalização político-partidária nas eleições autárquicas de outubro.

Entretanto, a meu ver, o maior desafio passa por manter a unidade e com base nisso construir uma agenda e identidade coletiva comum. Isto porque, convém ter em conta que, atualmente, olhando para a sociedade civil juvenil da Praia, existem quatro grandes tendências ideológicas: afrocêntrica e/ou pan-africana; partidária; feminista; cristã.

A primeira, subdividida em quatro vertentes, ambos de inclinação socialista e, embora todos cabralistas, com inspirações diferenciadas – a renascença africana de Cheick Anta Diop, o socialismo africano de Kwame Nkrumah, o rastafarismo de Marcus Garvey e o afrocentrismo de Molefe Kete Asante. A segunda entre a vertente socialista e neoliberal (a roçar a extrema direita, em termos discursivos), embora ambos com tiques estatocêntrico. A terceira entre o feminismo liberal e o mulherismo africana. A quarta entre o catolicismo tradicional, o islamismo e as teologias pentecostais e de libertação.

Embora a rede integra organizações juvenis a seguir grande parte dessas tendências e vertentes, a eleição das questões urbanas, em que se destacam o direito à cidade, mas também as sociais, em que se destacam as desigualdades em todas as suas dimensões e a pobreza urbana, como pauta de reivindicação e de luta acaba por ser transversal a maioria destes movimentos, sem descurar as questões identitárias, com foco na crise de identidade e da negação de África.

Como tem sido lema do grupo, o caminho se faz caminhando. Do que conheço dos processos associativo e político de rua na capital cabo-verdiana, sobretudo nesta última década, basta que se evite leituras enviesadas e tendências autoritárias verificadas em iniciativas anteriores que está criado condições para se constituir um movimento societário de pressão que olhe o todo urbano a partir de perto e de dentro e não apenas limitado pela lente político-partidária ou do eixo centro-sul da Praia.

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 696, de 31 de Dezembro de 2020

PUB

PUB

PUB

To Top