Olímpio Tavares*
PROVA DE FILOSOFIA – PRIMEIRA CHAMADA’2015
O objetivo destas linhas é mostrar, através da prova de Filosofia, válido para o acesso ao Ensino Superior, que o estado do ensino da Filosofia em Cabo Verde é lastimável. Para isso, vou selecionar algumas perguntas da prova em questão, para mostrar que, de facto, essas perguntas não exigem nenhuma competência filosófica dos alunos. De seguida, mostrarei, a título de exemplo, algumas perguntas que exigem competências filosóficas dos alunos. Por fim, concluirei que essa prova é reflexo do péssimo ensino da Filosofia que se pratica em Cabo Verde.
Em Cabo Verde, estuda-se a disciplina de Filosofia no 11º e 12º anos. O programa em vigor data da década de 90 do século passado. Portanto, tem quase 20 anos. De lá para cá, não se fez nenhuma alteração significativa. Aliás, cada escola vai remendando o programa através das suas planificações, acrescentando uns conteúdos e deixando outros de fora. Mas isso, como se sabe, não resolve o problema de fundo.
A prova de acesso está ancorado nesse programa, e, deste ponto de vista, não há muita crítica a fazer. A minha crítica é que o programa não exprime o que há de melhor na Filosofia e isso é péssimo para essa disciplina de filosofia. Dito de outra maneira: há coisas que, neste momento, se ensinam em Filosofia que estão completamente obsoletas, como, por exemplo, a parte histórica da Filosofia que cobre, praticamente, todo o programa do 11º ano.
Pegando na prova de acesso, é preciso dizer que tem 12 perguntas, divididas em 4 grupos. As oito primeiras perguntas referem-se à parte histórica da Filosofia que referi acima. Essas perguntas estão distribuídas no grupo I e II. No terceiro grupo, encontramos uma pergunta de escolha múltipla, com seis alíneas e uma pergunta sobre a teoria da revolução científica de Thomas kuhn. A prova termina com o grupo IV, com duas perguntas de desenvolvimento, em que o aluno deve escolher uma delas.
Das 12 perguntas, só duas são claramente filosóficas:a três do grupo II e o tema A do grupo IV. O resto das dez perguntas não são filosóficas. De entre essas dez perguntas, vou escolher três para ilustrar o que acabei de dizer. A primeira pergunta – Grupo I, pergunta 4 – exponha as principais etapas do método científico de Galileu. A segunda pergunta – Grupo II, pergunta I – há um mini-texto tirado de um dos livros de Kant sobre a Ética, e, de seguida, apresenta-se a seguinte afirmação: “Isaac ajudou um ancião a atravessar a rua”. Pergunta-se o seguinte: “Terá o Isaac agido por dever? Fundamente a tua resposta, à luz da ética kantiana”. A terceira pergunta – Grupo IV, tema B: “O fundamentalismo religioso e o terrorismo são grandes problemas do nosso tempo. Avalie a relação entre o fundamentalismo religioso e o terrorismo”. Dão-se três orientações para responder à pergunta: esclareça o problema em causa; apresente inequivocamente a tua posição; fundamente a tua posição, apresentando exemplos.
A primeira pergunta que selecionei diz para apontar as fases do método científico de Galileu. Esta pergunta não é filosófica, porque, não obriga o aluno a tomar uma posição crítica. Em vez disso, exige-se ao aluno que repita acriticamente as fases do método experimental proposto por Galileu. Por outro lado, esta pergunta não deveria ser feita em Filosofia, mas sim, em História da Ciência. Para terminar este ponto, convém dizer que Galileu era um físico e não um filósofo no sentido em que se entende a Filosofia hoje.
A segunda pergunta que selecionei diz se Isaac terá agido por dever e pede-se para fundamentar com base na ética kantiana. A frase proposta – Isaac ajudou um ancião a atravessar a rua – não é suficiente, nos termos da ética kantiana, para saber se o Isaac terá agido por dever ou não. Assim, qualquer posição que o aluno tome, fica sem fundamento. Porque, para Kant, para sabermos se um indivíduo agiu por dever temos de conhecer as suas intenções. E na frase apresentada não se vislumbra nenhuma intenção por parte do Isaac. Portanto, mais uma vez, a pergunta não faz sentido.
A terceira pergunta que selecionei diz respeito ao fundamentalismo religioso e terrorismo. Pede-se ao aluno para avaliar essa relação, com base em algumas orientações, que indiquei atrás. Fazer uma simples avaliação da relação que existe entre duas coisas não exige propriamente nenhuma competência filosófica relevante. No caso concreto, há disciplinas que podem fazer isso bem melhor, como por exemplo, a Sociologia, a História ou a Antropologia. As orientações seriam desnecessárias se a pergunta fosse elaborada de forma mais simples e com intenções filosóficas. Uma opção viável seria esta: há alguma relação entre o fundamentalismo religioso e o terrorismo? Justifica. Assim, o problema filosófico ficaria claro, a própria pergunta obrigaria ao aluno a tomar uma posição ou conciliar posições. A fundamentação e os exemplos viriam, naturalmente, com a justificação.
As provas de Filosofia deverão ter perguntas que exprimem, claramente, problemas filosóficos, de forma a obrigar ao aluno a tomar uma posição, mediante uma boa justificação. Vou indicar alguns exemplos de perguntas que devem figurar nos testes de Filosofia: será que os animais têm direitos? Justifica; temos o dever de ajudar os outros? Justifica; o conceito de incomensurabilidade de Thomas kuhn é consequente? Justifica; porquê que a lógica é importante para Filosofia? o que é a Liberdade?; o que é a Justiça?; o que é a Arte?; etc.
Depois de fazer uma breve análise da prova, posso concluir, sem grandes dúvidas, que essa prova foi elaborada de acordo com o programa em vigor que, infelizmente, não exprime o que há de melhor na Filosofia. O centro do problema do ensino da Filosofia, em Cabo Verde, não está nessa prova em si, como é óbvio. A prova é apenas um elemento que comprova esse gravíssimo problema. Em Cabo Verde, não se ensina Filosofia, ensina-se, sim, aos alunos a repetirem acriticamente a ideia de determinados filósofos. Isso não é Filosofia, é História da Filosofia de péssima qualidade. Infelizmente, essa prova de acesso não dá para saber se o aluno tem competência filosófica ou não. Isto porque os professores não trabalham competências filosóficas nas salas de aula com os seus alunos. A disciplina de Filosofia que se ensina em Cabo Verde, no 11º e no 12º anos, não merece o nome de Filosofia, mas sim de História de Filosofia de péssima qualidade (HFPQ).
Para terminar, é preciso dizer que, em Cabo Verde, estamos muito distantes da Filosofia. Porque Filosofia significa filosofar. Não é possível ensinar Filosofia, a sério, se não filosofarmos nas nossas aulas com os nossos alunos. E isso só se faz quando se encara a Filosofia numa tríade indissociável que inclui problemas, teorias e argumentos.
*Licenciado em Filosofia, pela Universidade Católica Portuguesa (Lisboa). Atualmente, leciona Filosofia na Escola Secundária “Olegário Tavares”, na vila de Achada do Monte (interior de Santiago).
Sobre a prova geral de acesso ao Ensino Superior
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