Por: Arsénio Fermino de Pina*
Estando longe da arena política e sanitária da minha paróquia, confinado, pelo Covid, à Mondrongolândia, não me imiscuo na riola das eleições municipais e pouco poderia acrescentar à evolução do Covid-19. Limito-me a recolher, digerir e acrescentar algo de livros do historiador judeu e professor numa Universidade Judaica, Yuval Noah Harari, baseado em descobertas realizadas por investigações multidisciplinares de paleontólogos, arqueólogos, antropólogos, sociólogos e outros cientistas, que apresento aos meus leitores, por nos darem uma perspectiva da evolução da Humanidade e do futuro mais ou menos próximo. Iremos começar por algumas definições esclarecedoras para evitar equívocos, antes de entrar propriamente no assunto que enriquece a mente de qualquer mortal.
Falamos de géneros, espécies e famílias sem entender bem o que são. Dois animais são da mesma espécie se tendem a acasalar entre si dando origem a filhos férteis. Os animais ou espécies que evoluíram de um antepassado comum são designados géneros; os leões, tigres, leopardos e gatos são espécies diferentes do género pantera. A espécie sapiens é do género Homo. Também o Homo sapiens pertence a uma família. Há apenas 6 milhões de anos, uma macaca pariu duas crias: uma tornou-se o antepassado de todos os chimpanzés, a outra é nossa avó.
Os seres humanos evoluíram, na África Oriental, há cerca de 2,5 milhões de anos, a partir de um género anterior de símios chamado Austrolopitheco, que significa macaco do Sul.
A verdade é que, desde cerca de 2 milhões de anos até há aproximadamente 100.000 anos, o mundo era o lar, exactamente ao mesmo tempo, de várias espécies de humanos: Homo rudolfensis (África Oriental), Homo erectus (Ásia Oriental) e Homo neanderthalensis (Europa e Ásia Ocidental), todos eles humanos. Os cérebros dos neanderthalensis eram ainda maiores do que os nossos actuais. No Homo sapiens o cérebro representa 2 a 3% do peso total do corpo, mas consome 25% de energia, quando em repouso.
Criar os filhos requeria um apoio constante de outros membros da família e dos vizinhos. É preciso uma tribo para criar um ser humano, pelo que a evolução favoreceu os que eram capazes de formar laços sociais fortes.
Os seres humanos alimentavam-se do tutano dos ossos dos grandes animais caçados pelas feras, e somente nos últimos 400.000 anos – com o surgimento do Homo sapiens – o homem saltou para o topo da cadeia alimentar. Um passo importante no caminho para o topo foi o controlo do fogo. Há cerca de 300.000 anos, o Homo erectus, os neandertais e os antepassados do Homo sapiens já usavam o fogo diariamente, o que lhes permitia caçar incendiando florestas, afugentando as feras com tochas com lume para se apossarem das suas presas e fazer churrascos de carne tornando-a mais digerível e gostosa.
Os cientistas concordam que há cerca de 70.000 anos, os sapiens da África Oriental se espalharam até à Península Arábica e, a partir daí, depressa invadiram todo o continente euroasiático. Crê-se que os sapiens se cruzaram com os erectus e neandertais, ou, então, liquidaram-nos – teorias da substituição e do cruzamento.
O Homo sapiens conquistou o mundo graças, acima de tudo, a um recurso único e excepcional: a sua linguagem, a fala.
Crê-se que os cérebros desses sapiens eram diferentes dos nossos e se foram aperfeiçoando a ponto de, há cerca de 70.000, se aproximarem dos nossos, para começarem a fazer coisas especiais. Por essa altura, bandos de sapiens deixaram a África, pela segunda vez, expulsaram os neandertais e todas as outras espécies humanas do Médio Oriente, de todo o mundo. Chegaram à Europa e Ásia Oriental. Há cerca de 45.000 anos, conseguiram, de alguma forma, atravessar o mar em jangadas feitas de bambu ou madeira e chegar à Austrália. Entre 70.000 e 30.000 anos inventaram, barcos, lamparinas de óleo, arco e flechas e agulhas que lhes permitiam coser roupas quentes nos sítios frios. As primeiras obras e objectos a que se pode chamar arte e joalharia datam dessa época, bem como as primeiras provas incontroversas de religião, comércio e estratificação social. Essa nova forma de pensar e comunicar chama-se Revolução Cognitiva – aprendizagem, memória e comunicação.
A nossa comunicação evoluiu para nos permitir tagarelar, vindo a transformar-se na nossa linguagem bastante maleável. De acordo com esta teoria, o Homo sapiens é, antes de mais, um ser social. A cooperação social é a nossa chave para a sobrevivência e reprodução. Tanto quanto sabemos, apenas os sapiens conseguem falar sobre entidades que nunca viram, nunca tocaram ou cheiraram. Lendas, mitos, deuses e religiões surgem pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Ninguém jamais conseguiu convencer um macaco a dar-nos uma banana prometendo-lhe um fornecimento ilimitado de bananas depois da morte, no céu dos macacos. Somente os humanos é que vão nessa conversa…
Um grande número de estranhos consegue cooperar com êxito graças à crença em mitos comuns. As religiões estão enraizadas em mitos religiosos comuns.
As crianças acreditam no Pai Natal. Está tudo centrado no acto de contar histórias e de convencer as pessoas a acreditar nelas. Os adultos acreditam em mitos religiosos e outros. A população francesa passou, em 1789, quase da noite para o dia, da fé no mito do direito divino dos reis – que conferia poder absoluto – para a crença no mito da soberania do povo.
Não me vou deter muito na vida dos nossos antepassados recolectores-caçadores por já o ter feito numa série de artigos motivados pela leitura de obras do historiador americano Jared Diamond. Tinham uma vida nómada e possuíam poucos bens, dada a dificuldade do seu transporte. O primeiro animal domesticado foi o cão, utilizado na caça e no sistema de alarme contra animais selvagens e intrusos humanos. O comércio estava limitado a poucos objectos: conchas, âmbar e pigmentos. Calcula-se que o número deles era igual à população portuguesa actual. O seu nomadismo dependia das estações do ano. Com o tempo, descobriram como conservar, pela salga e secagem, certos alimentos (carne e peixe) e as vantagens da vida nas margens de rios e lagos, devido à riqueza em peixes e mariscos. De maneira geral os caçadores-recolectores eram mais saudáveis do que os da Revolução Agrícola seguinte, por viverem em pequenos grupos, movimentarem-se com frequência e terem uma alimentação variada. Abandonavam os velhos e crianças que não podiam acompanhá-los nas deslocações e até havia sacrifícios humanos de inspiração religiosa. Acreditavam que os animais e plantas tinham consciência e sentimentos e podiam contactar directamente com os humanos – animismo – razão por que aceitavam as crenças dos outros grupos e povos, ao contrário dos teístas da Revolução seguinte – monoteístas – que consideravam essa religião herética e estranha. Portanto, os animistas e politeístas eram tolerantes quanto às outras religiões, e até, por vezes, as integravam nas suas, ao contrário dos monoteístas, que acreditam num único Deus. Actualmente, os recolectores só existem no deserto do Kalahari e no Ártico.
Antes da Revolução Agrícola (da fixação do homem como agricultor) todas as espécies humanas viviam na região afro-asiática. O sapiens, com a Revolução Cognitiva, adquiriu a tecnologia e outra visão que lhe permitiu sair da região afro-asiática e ir colonizando a Terra, atingindo até ilhas através de jangadas e barcos. Na sua progressão pelas terras foram encontrando animais de grande porte que desconheciam, que foram matando para comer. Os únicos que sobreviveram viviam no mar, como as baleias, onde eles não chegavam.
Ao longo do último milhão de anos, houve uma Idade do Gelo a cada 100.000 anos, tendo a última ocorrido entre 75.000 e 15.000 anos atrás.
O sapiens conseguiu penetrar no continente americano por volta de 12.000 anos a.C., com o aquecimento global ocorrido nessa altura, vindos do Norte. Já a 10.000 anos a.C. já tinham atingido o Sul da América do Sul. Foram encontrando animais gigantes que foram devorando. A sua voracidade, levou à extinção de quase metade dos animais de grande porte do Planeta, muito antes de ter inventado a roda, a escrita e as ferramentas de ferro. Um exemplo famoso foram as Ilhas Galápagos, que só foram habitadas no século XIX, preservando assim a sua fauna única, incluindo tartarugas gigantes que, como os antigos diprotodontes devorados, não mostravam qualquer receio dos humanos.
Somente há cerca de 10.000 anos é que os humanos (sapiens) passaram de recolectores a agricultores – a chamada Revolução Agrícola – sedentarizando-se, no início no chamado Crescente Fértil, onde chegou por volta de 70.0000 anos, no Sudeste da actual Turquia, Oeste do Irão, como já descrevemos na série de artigos anteriores motivados pela leitura do livro de outro historiador, o americano Jared Diamond, intitulado “Armas, germes e aço – os destinos das sociedades humanas”, editora Relógio d´Água. O trigo e as cabras estavam domesticados por volta de 900 anos a.C., as ervilhas e lentilhas, por volta de 800 anos a.C. e a oliveira, em 500 anos a.C. Os cavalos, em 4.000 anos a.C. e a videira, em 3.500 anos a.C. Os habitantes da Nova Guiné domesticaram a cana do açúcar e as bananeiras e os africanos ocidentais, o milho miúdo africano, o arroz africano, o sorgo e o trigo. Chegados ao ano 1 a.C., os povos de quase todo o mundo eram, maioritariamente, agricultores.
Apreciando bem as coisas, afinal foram as plantas – sobretudo o trigo, o arroz, o milho, a cevada e as batatas – que domesticaram o sapiens, e não o contrário, isto é, obrigaram-no a fixar-se à vida sedentária. Domesticar vem do latim domus (casa).
Os recolectores que se estabeleceram por volta de 12.000 anos a.C. no Oriente Fértil devido à abundância de cereais selvagens, iam colhendo-os e carreando para as suas moradias. Repararam que, pelo caminho que percorriam, ia nascendo e crescendo cereais dos que transportavam, pelo que resolveram semeá-los perto das suas aldeias, arar o terreno, protegê-las de animais e eliminar as ervas daninhas, o que lhes poupava percorrer grandes distâncias. Construíram casas de pedras e celeiros. Foi assim que foram aparecendo aldeias espalhadas pelo Crescente Fértil.
A domesticação de animais foi um benefício enorme para o sapiens por dispor de leite, ovos, carne, lã, peles e força de trabalho, poupando-se a grandes esforços canalizados para outras actividades que exigiam inteligência e técnica, o que levou a uma explosão de número de burros, cavalos, porcos, carneiros, vacas, galinhas, patos, etc.
Se todo o trabalho do agricultor revertesse para ele, seria uma sabura, uma justa retribuição para o seu esforço e iniciativas. Mas, não. O resultado do stress da agricultura teve enormes consequências. Foi a base dos sistemas sociais e políticos de larga escala. Por todo o lado surgiram elites e governantes que viviam de grande parte da produção alimentar dos camponeses, à base da força e da religião, que os deixaram com o mínimo para sobreviver.
Quando a Revolução Agrícola criou condições para a construção de vilas e cidades apinhadas de gente, e mais tarde de impérios (babilónico, sírio, persa, chinês, romano), as pessoas inventaram histórias sobre grandes deuses, sociedades anónimas para criarem laços sociais necessários; portanto, gerou-se o nascimento da mitologia e da hierarquia social. Os famosos anfiteatros romanos construídos por escravos para os imperadores, romanos ricos e povo se divertirem vendo lutas de gladiadores foram resultado dessa exploração dos agricultores e escravos. Foram os deuses e mitos inventados pela imaginação humana que ajudaram a criar elites e impérios. O famoso Código de Hammurabi de 1776 a.C. serviu de manual para a Declaração da Independência Note Americana de 1776. Em 1776 a.C. a Babilónia era a maior cidade do mundo; esse império dominava a maior parte da Mesopotâmia, incluindo o moderno Iraque e partes da Síria e Irâo actuais. O Código de Hammurabi tinha por objectivo “fazer com que a justiça prevalecesse sobre a Terra, abolir os perversos e os maus, impedir os fortes de oprimir os fracos”. Pelo Código, ao contrário da Declaração da Independência americana, as pessoas não eram iguais, estavam subordinadas â ordem hierárquica.
Sobre a existência de deuses, da hierarquia e dos direitos humanos, não convém afirmarmos não existirem como factos, não vá o diabo tecê-los. O homem não possui direitos naturais, tal como as aranhas, morcegos, percevejos e chimpanzés não têm direitos naturais. Os direitos naturais, aliás, uma ordem natural é uma ordem estável, como a força da gravidade que, por mais que façamos ou que não acreditemos nela, não deixará de existir. Uma ordem imaginada (que sai da nossa imaginação, da nossa cabeça), pelo contrário, está sempre em risco de colapso, porque depende de mitos, e estes desaparecem quando as pessoas deixam de acreditar neles. Para preservar uma ordem imaginada são necessários esforços constantes e categóricos, muitas vezes sob a forma de violência e prisões. Por exemplo, para acabar com a ditadura salazarista foi preciso as forças armadas intervirem para subverter essa ordem imposta durante quase meio século, tendo a luta de libertação das colónias contribuído bastante para isso.
A ordem imaginada está incorporada no mundo material e dá forma aos nossos desejos e objectivos. As pessoas gastam, nos nossos dias, muito dinheiro em férias no estrangeiro porque são verdadeiros crentes nos mitos do consumismo romântico de usufruto de variadas experiências, isso incutido pela propaganda turística, e outra, bastas vezes enganosa, do consumismo. Para andar na ordem consumista há que convencer milhares e milhões de pessoas a cooperarem, porque não se trata de uma ordem subjectiva que existe apenas na nossa imaginação – é, pelo contrário, uma ordem intersubjectiva, que existe independentemente da consciência humana e das crenças humanas. O subjectivo é algo cuja existência depende da consciência e das crenças de um só indivíduo. O intersubjectivo é algo que existe no interior de uma rede de comunicações que unem a consciência subjectiva de muitas pessoas – a lei, o dinheiro, os deuses, as nações, e, actualmente, as redes sociais.
Antes da existência da escrita, as pessoas guardavam informações no cérebro, na memória, e iam transmitindo isso aos descendentes, oralmente. Claro que a memória, contida em células de certas partes do cérebro, não pode guardar tudo, tem os seus limites. Fomos conhecendo o período de antes da escrita, através de investigações de antropólogos, geólogos, paleontólogos e outros técnicos afins. Foram os sumérios, que viviam a Sul da Mesopotâmia, que inventaram a escrita, por volta de 3.500 a 3.000 anos a.C., pela necessidade que tinham de descobrir uma maneira de evitar ter de memorizar toda a quantidade de coisas e número dos seus negócios. Essa escrita não dava para escrever poesia nem histórias, porque só tratava de quantidades. Chamou-se a essa Escrita Cuneiforme. Nos Andes (América do Sul) também tinham uma escrita para número chamada Guipos. Mais ou menos por essa época, os egípcios desenvolveram outro sistema de escrita conhecida como Hieroglifos, e, mais tarde, na China e América Central. Por volta do século IX d.C. surgiu um novo tipo de escrita composto por símbolos que representavam os números 0 a 9, conhecidos por números árabes, embora tenham sido descobertos na Índia. A escrita como a que conhecemos veio depois, permitindo a fixação de poesias e histórias.
As hierarquias com a estratificação da sociedade em que as posições principais (sacerdotes e guerreiros) ocupavam o topo, e as outras, viviam como criados e escravos, foi uma consequência da riqueza, da esperteza e ganância de alguns. Se se quiser manter qualquer grupo humano isolado – mulheres, negros, índios, ciganos, judeus – a forma mais eficaz a adoptar é convencer toda a gente de que essas pessoas são uma fonte de contaminação. Na Índia, por exemplo, temos as castas. Os teólogos inventaram que os negros eram descendentes de Cam, filho de Noé, amaldiçoado pelo pai por ter olhado para ele quando, devido a uma bebedeira, tinha tirado a roupa, ficando nu, eram menos inteligentes do que os brancos, e alguns médicos alegaram que os negros viviam na imundice espalhando doenças, isto é, eram uma fonte de contaminação, tudo isso produto de preconceitos e ignorância dessas pessoas. Nós que tanto admiramos a civilização democrática grega, desconhecemos que no século V a.C., uma mulher não tinha estatuto legal independente, estando proibida de participar em assembleias populares ou de ser juiz.
Utiliza-se, bastas vezes, a biologia e a cultura para justificar comportamentos. “A biologia permite e a cultura proíbe”, é uma regra de longa data. A biologia está disposta a tolerar muitas possibilidades, a cultura obriga as pessoas a tomarem certas posições e a proibirem outras. A cultura tende a afirmar que apenas proíbe o que não é natural. O que é possível, também é, por definição, cultural. Em verdade, os nossos conceitos de “natural” e de “não natural” não provêm da biologia, mas da teologia. O significado teológico de “natural” é “de acordo com as intenções de Deus”, criador da Natureza, o que não é válido para os não crentes.
Estamos formatados desde o nascimento a certos mitos e ficções, o que nos leva a criar instintos artificiais que permitem que milhões de estranhos cooperem com eficácia. A essa rede de instintos artificiais, chama-se cultura. Como cada povo tem os seus mitos, ficções e instintos artificiais, obviamente que a nossa cultura própria é algo diferente da de outros povos. A igualdade e liberdade propalada pela Revolução Francesa, em 1789, foram consideradas valores fundamentais, embora sejam valores que se contradizem mutuamente. A igualdade só pode ser assegurada mediante a restrição da liberdade dos mais abastados e poderosos. Garantir que todos os indivíduos sejam livres de fazer o que lhes der na veneta adultera inevitavelmente a igualdade. É possível analisar toda a história política do mundo desde 1789 como uma série de tentativa para reconciliar esta contradição. Quando se dá prioridade às liberdades individuais, aumenta a pobreza dos que trabalham, e quando se prioriza a igualdade, como nos regimes comunistas, prevalece a tirania com o controlo de todos os aspectos da vida quotidiana. Temos exemplos disso nos livros de Charles Dickens, Soljenitsin e George Orwell. O nosso patrício Casimiro de Pina também explica isso com muita clareza.
O dinheiro em moeda e papel surgiu já tardiamente na vida dos que fizeram a Revolução Agrícola. Os búzios foram usados como dinheiro durante cerca de 4.000 anos por toda a África, Ásia Meridional, Oriental e Oceânia. O dinheiro é o mais universal e eficiente dos sistemas de confiança mútua alguma vez criada. O primeiro dinheiro conhecido da história foi a cevada, surgida na Suméria por volta de 3.000 a.C., ao mesmo tempo que a escrita. 1.500 anos depois a cevada foi substituída pelo Shekel de prata. Os pesos padronizados de certos metais preciosos acabaram por dar origem às moedas. O poder do imperador tinha por base o Denário. O termo “denário” tornou-se o nome oficial das moedas na Jordânia, Iraque, Sérvia e Tunísia.
Por altura da viagem de Vasco da Gama à India havia cerca de 500 milhões de Homo sapiens no mundo. A ignorância das pessoas relativamente às doenças e outros assuntos era enorme. Muitos continentes e ilhas eram, desconhecidos bem como a existência de muitos de animais, plantas, micróbios, vitaminas; as doenças eram atribuídas a castigos divinos de pecados. Somente em 1674 é que Leeuwenhoek viu, ao microscópio que inventou, um micro-organismo numa gota de água. Por essa razão, mais de metade das tripulações das caravelas morria durante as longas viagens de uma doença intrigante que levava à perda de dentes, inflamação da mucosa da boca, edema e morte, o escorbuto, cuja causa, afinal, era, falta de vitamina C na alimentação que tinham, à base de carne e peixe secos salgados, biscoitos e bolachas. Somente em 1747 é que se descobriu a sua causa, pelo médico James Lind.
Admire-se o progresso do último século, quanto à tecnologia e descobertas como a de engenheiros genéticos que conseguiram, recentemente, aumentar em seis vezes a esperança de vida das minhocas Caenorhabditis elegans, o que nos anima a pensar que algo semelhante pode ser atingido connosco no futuro!
Ter em conta que muitas dessas viagens levavam a bordo investigadores que iam observando, descrevendo o que iam observando e sugerindo interpretações e hipóteses. Foi assim que Darwin foi parar às ilhas Galápagos, tinha ele vinte e poucos anos, e o português, de origem judaica, Garcia de Orta, foi à Índia, como médico de um oficial, e estudou as plantas medicinais, produzindo o livro “Colóquios Simples”, em 1563, sobre “as drogas e coisas medicinais da Índia”. Além das indescritíveis infâmias cometidas pelos europeus nessas paragens, há que assinalar alguns benefícios ligados a descobertas médicas e farmacêuticas, construção de linhas férreas, urbanizações modernas, descoberta de civilizações antigas no Médio Oriente, etc. A acção dos espanhóis na América do Sul e Central foi das piores dos imperialistas, descrita noutros artigos, bem como dos europeus na América do Norte, onde a população indígena – os “índios” que vemos nos filmes de cow boys – foram dizimados e alguns exemplares confinados a reservas. Foram chamados “índios” por Colombo se ter convencido ter chegado à Índia viajando para Oeste; chamados “índios” por Colombo se ter convencido ter chegado à Índia pelo Ocidente.
De assinalar que algumas das famosas companhias marítimas que se lançaram no comércio e descobertas, sobretudo inglesas e holandesas, não eram estatais mas privadas, tendo contribuído para o robustecimento do capitalismo com as riquezas em ouro, prata, especiarias, matérias-primas e até escravos das terras descobertas, algumas compradas ao preço da chuva, mas a maioria roubada, terras, mais tarde, nacionalizadas pelos Estados e convertidas em colónias. O capitalismo foi decisivo, não somente na ascensão da ciência como também no surgimento do imperialismo europeu e na criação do crédito capitalista. Desde os bons resultados do crédito, os reis passaram a integrar os capitalistas na governação, o que permitiu a valorização do crédito sobre os impostos, vindo depois a criar-se o sistema de companhia de responsabilidade limitada, com vários credores, em vez de ser um único – sociedades por quota e comércio de acções. A mais famosa sociedade por acções holandesa, a VOC, foi registada em 1.602. Foi dinheiro da VOC que permitiu a conquista da Indonésia, e, outra semelhante, a WIC, Nova York. O continente indiano foi conquistado, não pelo Estado britânico, mas por um exército mercenário da Companhia das Indias Orientais Britânicas. Claro que, mais tarde, tanto a Indonésia como a Índia foram, respectivamente, nacionalizadas em 1800 e 1858 e convertidas em colónias.
Em 1840, a Grã-Bretanha declarou guerra à China, em nome do “comércio livre”, isso para impor a venda livre de ópio, a que a China se opunha. Pelo seu poder em armas e naval, a Grã-Bretanha dominou facilmente a China, Exigiram, e conseguiram, o controlo sobre Hong Kong, de onde controlavam o negócio da droga. Esse controlo de Hong Kong durou até 1997. No final do século XIX, cerca de 40 milhões de chineses – um décimo da sua população – estavam viciados em ópio. Também o Egipto esteve sob controlo inglês até ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Estes poucos exemplos dão-nos uma ténue medida dos abusos da força dos europeus.
A fé no mercado livre é uma crença igual à do Pai Natal, quando extremada. O recurso económico mais importante é a confiança no futuro, e este recurso está sob a constante ameaça de ladrões e charlatães. Os mercados por si só não oferecem qualquer protecção contra a fraude, o roubo, o cartel e a violência.
O tráfego de escravos, por exemplo, não era controlado por qualquer Estado ou Governo. Tratou-se de um empreendimento puramente privado, organizado e financiado pelo mercado livre, de acordo com as leis da oferta e da procura. Graças ao seu fabuloso lucro, as empresas compravam navios, contratavam marinheiros, soldados e comandantes, compravam escravos em África e transportavam-nos, como gado, para a América, vendendo-os aos donos das plantações de cana de açúcar, algodão e café.
O século XIX não trouxe qualquer melhoria em termos de ética do capitalismo. A Revolução Industrial enriqueceu os banqueiros e os donos do capital, mas condenou milhões de trabalhadores a uma vida de pobreza abjecta. Nas colónias as coisas eram muito piores. Em 1876, o rei Leopoldo II da Bélgica, simulando a criação de uma organização humanitária não governamental,apoderou-se do Congo, enchendo-se de dinheiro na exploração da colónia, levando à morte de cerca de 20% da sua população.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o credo capitalista, bem tolerado e até justificado pelo cristianismo, passou a ser controlado, em grande parte graças ao medo do comunismo.
A Revolução Industrial e a descoberta de novas fontes de energia, que podiam substituir a dos músculos dos seres humanos – o motor a vapor e de explosão -, após a utilização do petróleo e da electricidade, vieram a dar mais força ao capitalismo e enriquecer ainda mais os capitalistas. A Grã-Bretanha tornou-se a fábrica do mundo. As descobertas científicas levaram a que a humanidade inventasse matérias-primas completamente novas, como o plástico, o silicone e o alumínio. Estas duas últimas eram conhecidas, mas difíceis de extrair, a ponto de o alumínio, por ser tão raro puro, Napoleão III ter mandado fazer talheres de alumínio reservados a convidados muito especiais.
No mundo actual, de abundância mal distribuída, um dos problemas mais bicudos é a obesidade, que aflige os mais pobres, que se empanturram com pizzas e hamburguers, a chamada comida de plástico, para os sete biliões de pessoas que habitam a Terra, quando, em 1700, eramos 700 milhões, em 1800, 950 milhões e em 1900, 1,6 mil milhões.
Como vimos, uma comunidade imaginada é um grupo de pessoas que não se conhecem, mas que acreditam conhecer-se: reinos, impérios, igrejas; funcionou durante milénios como comunidades imaginadas, inventadas pelo homem. Os dois exemplos mais importantes para a ascensão entre comunidades imaginadas são a nação e a massa de consumidores. A nação politicamente organizada chama-se Estado, e a massa de consumidores, mercado. A constituição de Estado como conhecemos actualmente na Europa levou bastante tempo, e nos outros continentes foram os europeus a delimitar as fronteiras dos Estados, arbitrariamente, na maioria dos casos.
O interesse e beleza da Teoria de Evolução de Darwin é não precisar de se presumir a criatividade de um Criador Inteligente para explicar como as girafas acabaram por ficar com pescoços compridos. A selecção natural chega-nos para isso associada a incorporação de códigos genéticos de outras espécies como acontece com as bactérias que ganham resistência aos antibióticos roubando-a a outras bactérias. Havendo genes, as mutações, aparentemente espontâneas ou provocadas, podem dar origem a seres distintos.
Até há pouco tempo essas mutações eram o resultado da selecção natural. A grande Revolução Científica ou biológica já é uma realidade provocada pelo homem. Duas experiências célebres: criação de um coelho fluorescente com a implantação do ADN extraído de uma alforreca verde-fluorescente, e implantação de uma orelha no dorso de um rato, o que irá permitir, num futuro breve, que os cientistas produzam orelhas artificiais e outros tecidos e órgãos que poderão permitir serem implantados em seres humanos. Alguns mamíferos foram igualmente alvo da engenharia genética; actualmente, os cientistas estão a conduzir experiências com vacas geneticamente modificadas cujo leite contém lisostafina, um produto que ataca a bactéria que provoca mastite (inflamação das tetas); na suinicultura introduzem um gene que transforma o ácido gordo Omega 6 em Omega 3, mais saudável, melhorando, portanto, a qualidade da banha e do bacon.
Todas esses avanços científicos poderão vir a ser favoráveis à Medicina na prevenção, diagnóstico e tratamento de malformações e doenças e até no prolongamento de vida saudável do ser humano.
A Revolução Científica da Biologia é capaz de ressuscitar criaturas extintas como o Neandertal e o mamute e outros seres que desapareceram há milénios, conservados no gelo na Sibéria e Polo Norte. Outra possibilidade é a nova tecnologia Ciborgue, que conjuga componentes orgânicos e inorgânicos, sem falar na inteligência artificial cujo projecto recebeu da U.E. um financiamento de mil milhões de euros. Será que o sapiens se transformou em Homo deus? Se os físicos definem o BIg Bang como uma singularidade, isto é, um ponto em que todas as leis da Natureza conhecidas não existiam, também não existia o tempo. Por isso, é inútil dizer que existia algo “antes”. Há 70.000 anos, o Homo sapiens era um animal insignificante que fazia a sua vida num recanto da África. Nos milénios seguintes transformou-se no senhor do mundo inteiro e num dos flagelos do ecossistema. Hoje está prestes a tornar-se num deus, preparado para conquistar não só a juventude eterna como também as capacidades divinas de criação e destruição, como nos diz Noah Harari.
Parede, Novembro de 2020
*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)