Por: Alexandre Gomes
“Se a ética não governar a razão, a razão desprezará a ética” José Saramago, in Cadernos de Lanzarote (1995)
Cabo Verde realiza eleições periódicas e regulares que, por imperativo legal, as dos titulares dos órgãos municipais decorrem de 4 em 4 anos, pelo que, antes do surto da pandemia mundial, tais eleições já estavam previstas para 2020.
Assim, o Governo em sede de Concelho de Ministros depois de ouvir as forças políticas, marcou por Decreto-regulamentar nº 8/2020, de 7 de agosto, a data das eleições gerais dos titulares dos órgãos municipais para o dia 25 de outubro, materializando assim o preceito constitucional e do Código Eleitoral. Eleições essas que decorrerão num cenário político-social atípico, em face à situação pandémica motivada pelo Covid-19 que ainda persiste no país.
Ciente disso, a CNE (Comissão Nacional de Eleições) enquanto órgão superior da administração eleitoral, atempadamente começou a procurar soluções e consensos necessários para puder ajustar procedimentos inseridos no processo eleitoral sob o ponto de vista organizativo, em função das medidas de saúde vigentes no país, garantido, por um lado, o cumprimento das normas sanitárias e, por outro, evitar a aglomeração de pessoas no dia da votação. Não obstante a adoção de tais medidas, a grande preocupação da CNE se prende com atividades que integram a propaganda eleitoral que, ocasiona a concentração de pessoas por força do princípio da liberdade de exercício dos direitos de reunião e manifestação que arrastam um elevado número de pessoas com potencial aumento de risco de disseminação do vírus da Covid-19.
Assim, a CNE levou tal preocupação junto à Direção Nacional de Saúde (DNS) no sentido de obter desta entidade máxima em matéria de saúde pública, recomendações e orientações para essa fase eleitoral, tendo na altura a DNS enviado à CNE um documento intitulado “Principais considerações e recomendações de saúde pública para a realização de eleições no contexto da covid-19”, que tem por base diretrizes dadas pela Organização Mundial da Saúde aos países em processos eleitorais no contexto pandémico.
Foi com base nisso que a CNE, na impossibilidade de obter por via legislativa, diretrizes jurídico-legais a vigorar nesse contexto, decidiu em plenário com participação assídua e amplo consenso dos partidos políticos e candidaturas ao pleito de 25 de outubro, um documento intitulado como CÓDIGO DE CONDUTA a vigorar durante as eleições, impondo certos limites ao exercício da propaganda eleitoral em nome da saúde pública. Código esse que brilha pela denominação, mas que peca à nascença por, formalmente, estruturar-se em apenas sete cláusulas e um enquadramento que adveio de uma deliberação da CNE, que o antecede e, substancialmente, por demonstrar um tanto ao quanto vazio de conteúdo e desprovido de coercibilidade, pelo que, perde o caráter da imperatividade. Tão logo, morreu antes de nascer, para não dizer, trata-se de um folclore de figura a tentar ludibriar os mais incautos, sem prejuízo da boa fé da CNE que atuou dentro do quadro máximo de sua atribuição que lhe competia nessa matéria.
Assim, coloca-se a questão do caráter vinculativo do tal CC face à propaganda eleitoral como um direito fundamental e constitucionalmente consagrado. Antes de mais, seria premente descortinar em termos substanciais, aquilo que é um CC, tratando-se, na verdade, de um documento que estabelece um conjunto de princípios e de regras de natureza ética e deontológica que deve presidir ao cumprimento das atividades desenvolvidas por uma organização, ou seja, trata-se de um guia para o exercício da atividade que tem por objetivo partilhar valores que devem nortear o exercício da atividade público-privada. As suas decisões, tipificam a natureza de recomendações de carater ético-deontológico sem força de lei. Assim sua efetivação fica sufragada aos valores ético-deontológico cuja inobservância leva a reprovação psicossocial, sem prejuízo de haver normas punitivas que podem ser clausulados.
Ciente disso o CC ora adotada pela CNE foi estribado no parecer emitido pela DNS tratando-se, grosso modo, de meras recomendações sem força vinculativa jurídico-legal que pudesse sacar às candidaturas e/ou aos candidatos em caso de inobservância.
Por outro lado, a campanha eleitoral é desenvolvida pelas candidaturas sob a égide do princípio da liberdade, mormente a liberdade de reunião e manifestação consagrando assim o princípio da propaganda eleitoral como um direito fundamental com guarida constitucional. Tão logo, manifesta-se inconstitucional qualquer restrição ou condicionalismo ao exercício de propaganda eleitoral por uma candidatura que optasse por não observar os preceitos do CC por em causa estar um direito fundamental que só pode ser restringida por via legislativa e a acontecer em caso de declaração de estado de sítio ou de estado de emergência e nunca por uma deliberação. É nesse quadro que se vai realizar as eleições municipais de 25 de outubro perante um preceito constitucional vigente que configura um direito fundamental e, numa outra prisma, a existência de um CC que estabelece condições gerais de segurança sanitária a que devem obedecer nos eventos que serão realizados durante a campanha eleitoral.
Ciente disso e perante a vigência dos dois instrumentos, em que a Constituição goza de primazia por ser a Magna Carta da República e princípio fundante da ordem jurídica e, por outro lado, do CC tratar-se de uma deliberação que, pese embora, fora reconhecida sua aceitação por todas as candidaturas coloca-se a questão de fundo: como harmonizá-los, sem prejuízo da prevalência que goza a Constituição. Neste quadro, coloca-se a questão da ética no exercício da atividade política que é transversal a todos os setores da vida. É dever de todos, mormente daqueles que consideram defensores na linha de frente dos ideais do Estado primarem pelo cumprimento dos deveres deontológicos que estão na base do CC que assinaram. Porém a prática nesses dias de campanha eleitoral que decorrem com muito fervura por todos os municípios do país, vem nos demonstrando o contrário e o agir em contramão a um acordo que todos os stakeholders na altura aplaudiram e honraram cumprir escrupulosamente. Está-se perante um contrassenso e uma incoerência de todo o tamanho, pelo que, a deontologia na política, deverá ser resgatada o mais rapidamente possível, sob pena de crucificarmos valores e ideais que fazem parte da idiossincrasia do cabo-verdiano e corresponder ao exercício do mínimo ético existencial.
Posto isto, diríamos que as prescrições impostas por um CC são governadas pela ética e nunca pela lei – é a tal lei da razão – fazendo valer o princípio de que a ética deve governar a razão como lei de caráter geral e universal e é baseado nesse valor axiológico que sustentamos a ideia de que não houve “boa” vontade política, deliberada, para enquadrar as eleições ao contexto sanitário em que se vive no país. Estas ideias nos fazem recordar ligeiramente o sábio de Konigsberg. A doutrina de Kant nos ensina sobre a consciência moral, uma espécie de voz interior que ordena o que devemos ou não fazer, impedindo-nos de realizar determinadas ações (“contrárias ao dever” e/ou “conforme ao dever”), gerando em nós sentimento de obrigação/dever que nos impulsiona a realizar uma ação por puro respeito pela lei moral (a lei da razão que o Homem descobre em si mesmo como ser livre e racional). Num sentido mais pragmático e parafraseando Immanuel Kant, diante do contexto pandémico em que vivemos, bastaria a lei da razão para determinar o que é certo ou não fazer, e não necessariamente agir sob a força de um poder coercitivo expresso num Código de Conduta, ou em qualquer outro instrumento legislativo, tendo em vista sempre a dignidade da pessoa humana.
Definitivamente, a sua ética “não nos diz o que podemos fazer nesta ou noutra circunstância, mas sim, o como e o que devemos fazer em todas as circunstâncias: Agir puro e simplesmente por dever”, com a finalidade de moralizar as nossas intervenções e humanizar relações interpessoais.
Contrariamente, nessa fase de campanha eleitoral como a ética não vem governando a razão, esta será obviamente desprezada pela ética.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 685, de 15 de Outubro de 2020