Apesar de assumirem um lugar em listas para os órgãos colegiais do poder político, muitos candidatos, sobretudo os mais jovens, não aceitam dar a cara pelo grupo que representam. Medo de represálias e retaliações no ambiente de trabalho actual ou em futuros concursos públicos estão na base deste receio. Um quadro que espelha o estado da democracia ao fim de trinta anos em Cabo Verde.
Aparentemente, estamos diante de um paradoxo. O rejuvenescimento generalizado das listas que concorrem nestas eleições autárquicas não significa, necessariamente, a inexistência de inibições para quem procura um lugar ao sol da política.
E um problema identificado sobretudo em listas de candidaturas independentes, mas que também pode acontecer entre os partidos dominantes na esfera política nacional.
Apesar de aceitar o desafio para ingressar uma lista, quer para a Câmara Municipal quer para a Assembleia Municipal (AM), seja nos lugares de efectivos ou suplentes, alguns jovens confessaram ao A NAÇÃO que o fazem com muitos receios. Aparecer publicamente, nomeadamente em fotografias, na Imprensa, é um dos seus receios.
“Eu posso dar a entrevista, mas não quero fotos. Não quero expor-me”, alegou uma jovem pertencente a uma lista independente para a AM, na ilha de Santiago.
Outra, ao impor essa condição, explicou que passa por uma “fase crítica no trabalho” e que está a concorrer para uma vaga em outros concursos públicos, pelo que não seria boa ideia mostrar agora o rosto. “Ainda não quero dar a cara por nenhum partido”, alegou, não obstante, ser candidata também à AM.
Estas e outras situações semelhantes foram verificadas durante a preparação dos cadernos “Cidadão Eleitor” da Comissão Nacional de Eleições (CNE).
A líder da Liga da Sociedade Civil, cabeça de lista para a Câmara Municipal da Praia, Ana Rita Reis, considera que o país está ainda muito “incipiente” no que toca à democracia e que, por causa de uma sociedade patriarcal e machista, as mulheres são ainda as mais lesadas.
“As mulheres estão com muito mais disposição e vontade para participar, mas muita boa gente, com até 15 anos de trabalho, apoia, mas de forma retraída. Uma situação lamentável, 30 anos depois de instaurado o regime democrático, ver pessoas que não exercem o seu pleno direito por medo de represálias”, lamenta a candidata.
Aliás, Ana Rita Reis alega que ela própria recebeu conselhos para não entrar na disputa pela CMP, sob pena de ser perseguida.
“Recebi chamadas de pessoas a aconselharem-me a não entrar por este caminho porque vou passar a ser perseguida”, declara. “Há momentos em que já estamos cansados e temos duas opções: esconder ou enfrentar a situação”.
Por outro lado, Anny Reis condena o machismo e meios pouco atraentes de fazer política, através de ataques pessoais.
“Os nossos políticos não sabem fazer campanha sem denegrir a imagem das pessoas, sobretudo quando se é mulher, é preciso muita força interior para não nos sentirmos vulneráveis”, sublinha.
Participar na disputa política ainda é um “acto de coragem”
Para o cientista político Daniel Costa, professor da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV), o clima de temor ainda existente no país advém, sobretudo, de uma sociedade fortemente partidarizada, tendência essa que resvala na Administração Pública.
“Temos um percurso histórico de autoritarismo, desde o período colonial, passando pelo regime de partido único até chegarmos, em 1991, num regime democrático, com dois princípios fundamentais: a liberdade e a igualdade. Historicamente, a Nação cabo-verdiana passou mais tempo sob regimes, práticas e a culturas autoritárias do que sobre regimes democráticos, portanto ainda deveremos levar mais algum tempo para assumirmos e praticarmos, na íntegra, os valores esperados num regime democrático”, explicou.
A nossa cultura, observa ainda, é “fortemente autoritária”, tanto nas relações pessoais como sociais, políticos e administrativos, estes últimos onde o fenómeno se verifica “de forma mais aguda”.
Para além de partidarizada, acrescenta o nosso entrevistado, a sociedade é “bipartidária”, com dois partidos a dominarem a máquina do Estado, nas empresas públicas e outros sectores da vida nacional, uma situação que cria um cenário onde “um é amigo” e “o outro inimigo”.
“Tudo o que se disser, e que possa contrariar a ideia ou as práticas de um dos partidos, é-se colocado automaticamente do lado do partido adversário. São aspectos desfavoráveis ao desenvolvimento de uma cultura democrática”, destaca.
Problema transversal
Uma prática com efeitos mesmo em grupos independentes, motivo pelo qual este politólogo sublinha o “acto de coragem” dos grupos e iniciativas independentes e da sociedade civil para enfrentar a actual conjuntura.
“Percebo que, de alguma forma, a sociedade civil tem vindo a revelar também, em contraponto, uma crescente intolerância à intolerância dos partidos”, observa, salvaguardando que, por outro lado, “há um menor grau de medo entre indivíduos com um certo nível de esclarecimento sobre os princípios e valores democráticos e sobre as práticas e princípios da administração e da governação”.
Nem todos conseguem enfrentar
O clima de medo e as possíveis consequências de tomar parte, em algum momento, na vida política do seu município, ilha ou país, cria constrangimentos com maior ou menor proporção, devido a factores económicos e sociais.
Costa fala em cenários diferentes: de um lado estão aqueles com alguma base de sustentação e que podem enfrentar a intolerância e, do outro, aqueles que, não tendo essa base de sustentação, resolvem participar porque aparentemente não há nada a perder.
Mas também existem aqueles que, participando, tentam manter-se à sombra, pois não há certezas quanto aos resultados das eleições e, consequentemente, do seu lugar no futuro.
“Quem já conseguiu obter uma certa estabilidade económica em termos de rendimento e condições de vida acaba por ter uma base de sustentação mais facilitadora da participação. Sente-se mais forte e mais protegido. São pessoas materialmente e intelectualmente mais preparadas para enfrentar a situação e participar com mais consciência, mas também com melhores condições de fazer face a represálias”, explica o politólogo.
Dependência do Estado
Entretanto, num contexto onde a maior parte das pessoas são jovens, as oportunidades de emprego, de salário e de rendimento são pequenas, o Estado ainda é o principal empregador e paga melhor, as expectativas de muitos jovens ainda é terminar a formação e encontrar um emprego no Estado.
“O conflito partidário é transferido para a Administração Pública e para as empresas do Estado. Quem for simpatizante do partido contrário é considerado inimigo”, explica o cientista político.
Para agravar a situação, diz, nos processos de acesso, através de concursos, os critérios muitas vezes não são os de mérito e competência, mas de simpatia ou militância. Apesar de ser uma prática prejudicial à democracia, acrescenta, “é também prejudicial à eficácia e à capacidade da própria AP, quando muitas pessoas são lá colocadas, não por capacidade técnica, mas por ser militante”.
“Diante de todos esses condicionantes, as pessoas fazem os seus cálculos. Não se expõem para não sofrerem retaliações de vária ordem, o que gera limites à liberdade de participação política e até de participação cívica”, reforça.
Daniel Costa considera, portanto, que uma maior participação é fundamental para fazer o poder recuar nas ameaças, direta ou indirectamente.
“Diria que quanto maior for a participação e melhor organizados estiveram os grupos na sociedade, mais vão recuar as ameaças e o autoritarismo que se verificam na sociedade, de forma geral, e na Administração Pública em particular”, e conclui: “A participação política e o engajamento político não acontece apenas através dos partidos, mas também por outros canais, como a sociedade, as comunidades, grupos de amigos e na família”.