Daqui a pouco mais de um ano, a 15 de Dezembro de 2021, assinala-se o 30º aniversário das primeiras eleições pluralistas para o poder local em Cabo Verde. Uma história escrita em múltiplos tons e que no próximo dia 25, domingo, ganha novo capítulo com mais uma jornada para eleger os presidentes, vereadores e eleitos municipais. Há ganhos notáveis, contudo há desafios que ainda se colocam aos autarcas da velha e nova guardas.
Um dos ganhos de quase três décadas de poder autárquico democrático percebe-se na consolidação do executivo municipal e da figura do presidente da Câmara como rostos do poder visível, concreto, a quem as pessoas recorrem para resolver os problemas. Fazem-se presentes, sobretudo nas zonas rurais ou da periferia, onde ministros e primeiros-ministros afiguram-se como entidades quase abstratas que lá não aparecem ou só aparecem de forma fugaz.
Sendo figura de proa, o autarca acaba com ser confrontado, no dia a dia, com problemas dos cidadãos, nomeadamente no tange ao emprego, financiamento do ensino superior, construção de estradas de grande porte, para quais não tem recurso nem autoridade.
Ao presidente de câmara e-lhe, normalmente, atribuída a culpa de muita coisa que é da responsabilidade do poder central. Na corrida às câmaras, assume amiúde compromissos fora do campo de actuação – vide as promessas na campanha que decorre – e assim acaba por se desgastar.
De todo o modo, nessa caminhada de quase trinta anos há também ganhos assinaláveis. Particularmente, em áreas como o saneamento básico e água canalizada, mas também na eletrificação das zonas mais afastadas dos centros urbanos. Neste campo, as ilhas do Fogo, Santo Antão, Brava e São Nicolau constituem exemplos marcantes.
Em Santo Antão, deu-se um passo à frente quando se avançou para a autonomia enérgica da aldeia piscatória de Monte Trigo, através do aproveitamento da energia solar. O projecto serve hoje de modelo para iniciativas similares, nomeadamente na ilha de Santiago e outras.
O desencravamento das populações residentes em zonas mais recônditas do país, por meio de construção de caminhos carroçáveis e posteriormente de estrada, o calcetamento de ruas, assim como ordenamento de algumas cidades do país e construção de espaços de lazer, apesentam-se como aspectos a realçar do trabalho do poder local.
Fraquezas e Desafios
Entretanto, também não faltam coisas que não correram de feição neste percurso. As assembleias municipais nunca assumiram o real papel de fiscalizador do executivo camarário, mesmo porque reúnem-se poucas vezes ao ano – quatro vezes. E nunca montaram uma estrutura de profissionalização dos eleitos municipais e a maioria nem tem espaço próprio para funcionar.
As assembleias apresentam-se ainda como apêndice das câmaras municipais, quando a Constituição da República e as leis municipais reservam-lhes um papel fulcral na definição das políticas municipais, sendo a instância por excelência onde as populações deveriam fazer-se ouvir. Nunca este papel se efectivou, na prática. Só se fala da assembleia municipal na hora de provar os orçamentos municipais e apreciar os planos de actividades. De resto, é figura de corpo presente.
Nota-se, igualmente, por vezes, uma gritante falta de transparência na gestão de recursos das autarquias, além de pouca informação que chega aos munícipes. Basta ver as denúncias que se fazem nas campanhas eleitorais e fora delas sobre a venda de terrenos – o principal activo de muitos municípios. Há processo da decorrer nos tribunais em que autarcas são arguidos em processos de venda ilegal de terreno.
A má gestão dos terrenos municipais e das encostas, como provam não só os recentes casos da Cidade da Praia mas também a distribuição desajustada de terrenos em São Vicente, constitui sinal inequívoco de que há muito por fazer nesse campo. Aliás, é de lembrar que foi isso que acabou por ditar o afastamento de Isaura Gomes da Câmara Municipal de São Vicente.
Além da gestão dos terrenos em si, muitas cidades clamam por uma organização urbanística na qual se leve em conta não só o embelezamento das ruas e avenidas, mas também a disponibilidade de terrenos para que as camadas mais pobre possam construir habitações condignas para viverem. Ou não fossem a habitação e as condições de habitualidade duas das grandes questões ou desafios que se colocam às autoridades e às famílias cabo-verdianas.
No dia-a-dia, o secretário municipal, que, deveria ser o gestor e o zelador da transparência nos processos municipais, é muitas vezes atropelado pela determinação sistemática dos autarcas de satisfazer promessas e compromissos com seguidores e simpatizantes políticos, ainda que tais não sejam enquadráveis na lei.
Não será à toa que tantos autarcas sejam chamados a prestar esclarecimento ou outros sejam condenados pelo Tribunal de Contas a devolverem dinheiro tirado dos cofres municipais sem enquadramento legal. A verdade que muitos desses processos, até então, acabam por morrer na praia, restando apenas os sinais de que a transparência urge e o papel do secretário municipal não pode ser decorativo.
Mais a mais, o atendimento nos serviços camarários deixa muito a desejar, assim como a gestão resíduos sólidos. Lixeiras ao céu aberto, em Santo Antão, São Vicente e Sal, para não estender a lista às outras ilhas, continuam a desafiar o poder local, num arquipélago cujo ambiente está sob constante ameaça.
No campo económico e financeiro, o desafio mostra-se enorme. Dos 22 municípios, pelo menos 11 geram pouca receita própria, dependendo assim quase que exclusivamente das transferências do Fundo de Desenvolvimento Municipal. Sendo assim, a autonomia é quase nula para a maioria. Algumas, como a de Tarrafal de São Nicolau, ou outras criadas no início deste século, nem sequer ainda conseguiram mobilizar recursos para construir o respectivo Paços do Concelho, muito menos estruturam-se para estimular a economia municipal. Outras, por via do compadrio eleitoral, estão sobrelotadas de funcionários e sempre que se tenta fazer alguma é o “Deus nos acuda”.
Adultos e responsáveis
O antigo ministro de Administração Interna, Mário Silva, numa recente entrevista ao jornal Expresso das Ilhas, chama atenção para mais dois aspectos fundamentais que se mostram como desafios para a consolidação do poder local. Um desses pontos defendidos por Silva remete-nos à ideia de o percurso do poder democrático provou que “os municípios são adultos e responsáveis”, portanto, “o conceito de tutela deve ser eliminado”. Nenhum Ministério deveria ter responsabilidade política sobre os municípios, pois.
Por outro lado, defende o antigo governante na mesma entrevista, nos últimos 20 anos não ter havido “nenhum programa de transferência de novas atribuições do Estado para os municípios”, o que demonstra que se trabalhou pouco na descentralização ou descontração de poder. Perdeu-se tempo com a regionalização, quando muito havia ainda por fazer a nível do próprio municipalismo.
Portanto, os novos autarcas que sairão do escrutínio do próximo domingo, 25 de Outubro, vão ter pela frente o repto de dar os próximos passos rumo a um poder local de gestão transparente, que cuide bem das pessoas e das cidades, que trabalhe em programas de habitação que não discriminem ninguém.
Estarão também colocados perante o desfio de incentivar o incremento da economia local, pois, sem uma economia local que possa gerar empregos e oportunidades, não há como estancar o êxodo rural, que se verifica e que esvazia ilhas como Santo Antão, São Nicolau ou mesmo algumas regiões do interior de Santiago. A continuar, dificilmente haverá como combater o desemprego que se alastra em muitos municípios.
(Publicado no A NAÇÃO (digital), nº 686, de 22 de Setembro de 2020)