Por: Alexandre Gomes
“A Igreja quando alicerçada sob os fundamentos da fé e do testemunho de Cristo pode transformar-se num exército que seja capaz de abalar o mundo.” In Primeiros Escritos de Ellen Gould White.
Assiste-se hoje e por toda a parte, casos de violência – dos mais diversos níveis, fruto de uma sociedade assente na desestruturação familiar, descrédito nas confissões religiosas, coadjuvado com a existência e ascensão ao poder de forças políticas que propalam discursos demagogos, populistas, xenófobas e, em certa medida, apologista à violência.
Sinais de preocupação
O contexto mundial, de uns tempos para cá, vem apontando sinais de alguma preocupação que adveio com a eleição de Donald Trump e Jair Bolsonoro à presidência dos Estados Unidos de América e do Brasil e, mais recentemente, com a chegada de uma força política da extrema-direita à Assembleia da República portuguesa – o CHEGA – liderado pelo seu deputado André Ventura, sem olvidar dos movimentos jihadistas e terroristas, que tem devastado o mundo com seletivos atentados em regiões previamente identificadas e atualmente com ataques assíduos na África Ocidental, bem assim os conflitos armados que se fazem sentir um tanto ao quanto por todo o lado, com destaque na Síria e nos países do Oriente Médio e, mais recentemente, o golpe de Estado, que ocorreu no Mali.
Destaca-se também, a partir do segundo semestre de 2019, a guerra comercial entre os EUA e a China, o conflito diplomático com o Irão, a Correia do Norte e Israel-palestina, a tensa resistência a vigorar no seio dos membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas exercida pela Rússia com conivência da República Popular da China a opor-se ao bloco liderado pelos Estados Unidos que coliga a França e o Reino Unido.
Outrossim, a corrida desenfreada entre os países para uma descoberta pioneira da vacina contra o vírus da SARS-COVI 2, responsável pela doença do Covid-19, demonstra o individualismo sem precedentes e bagatela preocupação no que tange à segurança dos Estados e do substrato que os compõe, as pessoas. Na teoria, tudo não passa de um mero discurso fantoche porque, na prática, assistimos a situações que semeiam o ódio, nutrem o individualismo egocêntrico e minam a segurança dos países, despoletando um clima de terror e medo entre os Estados, com nefastas consequências para os países mais frágeis e em vias de desenvolvimento.
O consenso entre as nações é hoje, e mais do que nunca, uma prioridade, porém de difícil estabelecimento, isto ninguém tem dúvida, numa autentica slogan à moda inglesa first my, second my and you never…
Situação de Cabo Verde
Cabo Verde não foge à regra, pese embora registamos níveis de violência com contornos diferentes face ao resto do Mundo. Um pequeno país insular, com menos de 50 anos de independência, em vias de desenvolvimento, situado na encruzilhada continental, não nos deixa imunes face à situação geoestratégica e geopolítica que temos no concerto das nações.
O último relatório do Conselho de Direitos Humanos da ONU, aprovado em Genebra, destacou o progresso do país lusófono em várias áreas, mas pediu mais ação contra violência doméstica, a exploração sexual das mulheres, bem como o acelerar de políticas tendentes a conter a violência juvenil e urbana.
Os representantes elogiaram Cabo Verde pelos seus esforços para proteger os direitos humanos, particularmente com a revisão do Código Penal para criminalizar o tráfico de pessoas e a exploração sexual de crianças e escravidão. Também notaram com satisfação que o país aceitou recomendações sobre a redução da detenção pré-julgamento e sobre a proteção dos direitos das mulheres e meninas à educação e saúde.
Alguns oradores, no entanto, lembraram que o país ainda não materializou de forma plena a lei da violência baseada no género, dizendo que a escala de violência doméstica e exploração sexual das mulheres é grande. Expressaram ainda a preocupação com visões patriarcais sobre o papel das mulheres e meninas, e o alto número de casos de gravidez na adolescência.
É nesse contexto nacional e internacional que entendemos que a violência é um fenómeno preocupante e que interpela a todos pelo facto de pôr em causa o principal ativo de um país, a segurança, que desde Grécia até os dias de hoje são fins do Estado a par da educação e bem-estar económico-social. Neste sentido, combatê-la é imperativo, mas mais, discuti-la e debate-la, revela-se de capital importância face às terríveis consequências que acarreta nos mais diversos seguimentos da sociedade civil.
A par disso, o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) emitida em 2013, aponta que, no global, a violência é responsável por cerca de 1,28 milhões de mortes de pessoas no mundo.
Violência urbana
A violência pode ser analisada em vários contextos, obviamente. Entretanto, nesta análise cingiremos à violência urbana que, de uns tempos para cá, vem assolando o nosso país, com destaque para os grandes centros urbanos, como a Praia e Mindelo, chegando às ilhas do Sal e da Boa Vista pelo fluxo turístico que torna convidativo a práticas marginais.
A situação já foi pior, tende a melhorar com reformas legislativas e investimentos que têm sido feito no setor da segurança, com sinais positivos a partir da alternância política ocorrida no país a 20 de março de 2020.
Estudos apontam que a violência urbana predomina na camada jovem na faixa etária dos 14 aos 35 anos. Trata-se de uma indicação meramente formal porque na prática deparamos com violência em etapas da vida diferentes.
Em Cabo Verde, a violência urbana, tem sido um fenómeno estrutural, complexo e muito grave, que tem exterminado muitas vidas, fazendo reféns muitas pessoas, deixando em pânico e numa tristeza profunda muitas famílias, mergulhando o país num caos sem precedentes.
Este fenómeno começou a ganhar contornos nos finais da década de noventa em que, pela primeira vez, se ouviu falar de “THUGS”, para designar jovens de vários bairros da cidade da Praia, que adotaram uma forma de trajar peculiar e que competiam entre si, num autêntico figurino de “american boys”.
Ganhou contornos diferentes com o evoluir do tempo e com a implementação de políticas públicas de segurança questionáveis. Assim, rapidamente o fenómeno “thugs” transformou-se como que num eufemismo do termo “bandido/ladrão”, o qual tem por modus operandis os famosos “casu bodi”. Alem disso, resulta-se também em homicídios hediondos, assaltos à mão armada e às residências e, recentemente, às instituições financeiras e de créditos e os supostos casos de sequestros e rapto de pessoas.
Urge pensar e bem esse fenómeno que pode ter na sua base várias causas, dentre elas: a desestruturação familiar, o crescimento desajustado da nossa urbe, o desequilíbrio social visto e sentido quer na horizontal quer na vertical, a perda de valores morais e religiosos e, acima de tudo, a posição geoestratégica de Cabo Verde, colocando-o na rota do crime como outrora foi na rota comercial no esquema do comércio triangular. Cabe a todos, e a nós, enquanto jovens, debruçar sobre esse tema e descortinar qual é o verdadeiro papel que cabe às instituições com responsabilidade no combate à delinquência juvenil e violência urbana.
In casu, o Estado, a família, as igrejas, de entre demais outras instituições com responsabilidade na matéria, desempenham um papel crucial, por serem instituições básicas que lidam, prima facie, com o psicossocial do homem, contribuindo para a formação de sua personalidade e afirmação plena enquanto ser social e político.
Igrejas: parceiras privilegiadas
As Igrejas são parceiras privilegiadas que pelo seu passado contribuíram para a formação de várias gerações de cabo-verdianos, com princípios e valores plasmados na Doutrina Social, como a promoção do bem comum, da solidariedade ou da subsidiariedade, contribuindo de forma consistente para o reforço da nossa identidade, no país e na diáspora.
As Igrejas estarão sempre na linha da frente na prossecução das políticas sociais do país. Elas conhecem o quotidiano das nossas gentes, mormente daquelas famílias e jovens que mais precisam da solidariedade e intervenção dos poderes públicos.
Ademais, as igrejas, a par das demais instituições, desde os primórdios, têm-nos revelado valores que, postos em prática, há-de alterar de que maneira, o estado de coisas. Outrossim, a igreja nos ensina o modelo da família de Nazaré. Essa família nuclear – constituída por José, Maria e o Menino Jesus – nos legou imutáveis e supremos valores. José – carpinteiro de profissão – foi um pai exemplar e exemplo, educado e educador, fiel à família e solidário para com os demais; Maria – mãe responsável e cuidadosa, desempenhou, e bem, a sua função, e enquanto mulher e mãe, demonstrou fidelidade, lealdade e amor ao marido e ao Menino Jesus; este, por seu turno, obediente aos ensinamentos e leal aos pais, seguiu as pisadas do pai e, guiado pelo espírito, aos doze anos, ainda tenra idade, já discutia com os doutores da época, revelando sabedoria, amor ao próximo, espírito altruísta, compaixão e misericórdia.
É o retrato dessa família que deve ser resgatado e trazido à nossa realidade. Mas como? Será possível? São questões para refletirmos…
Paradoxalmente, a sociedade atual está corrompida pelas profecias pessimistas de mestres como Freud, Nietzsche, Marx, que falharam… Apesar dos duros golpes que a religião sofreu na modernidade “Deus não morreu”, a igreja não fechou as portas e a religião não desapareceu do mapa e nem tão pouco é o ópio do povo. Muito pelo contrário. A religião hoje está de volta e com força total, experimentando um crescimento nunca antes visto. É o tal processo ou fenómeno de Ressacralização.
Não obstante, este novo momento cultural vivido, muitas pessoas seguem-se perguntando pela importância da igreja no contexto social da violência. Ciente disso, apontamos aqui duas razões pelas quais entendemos ser a igreja importante nesta questão.
Primeiramente, a igreja é importante porque ela é um raro contraponto ao individualismo reinante nos nossos dias. Nestes tempos altamente competitivos onde o outro cada vez mais é visto como um concorrente e adversário, valores como o altruísmo, a generosidade, a gratuitidade, o perdão, o amor, a amizade, a tolerância, a solidariedade inter alios, tendem a desaparecer.
A sociedade, no entanto, não pode prescindir deles, pois constituem um importante contrapeso para a manutenção do equilíbrio na “relação eu-tu”, sobre a qual a vida social se edifica. Ao cultivar e encorajar a vivência quotidiana de tais valores, contribui-se significativamente para a saúde social, impedindo-nos de tomarmos o caminho sem volta do egocentrismo.
Uma segunda razão tem a ver com a ESPERANÇA que ela encarna e proclama. Neste nosso contexto cabo-verdiano de tantas más notícias, a igreja insiste “rebeldemente” em ser um foco irradiador de boas novas de salvação e esperança do Reino de Deus. Contra todas as evidências contrárias, a igreja desenfreadamente anuncia o triunfo do bem sobre o mal, a vitória da vida sobre a morte, o êxito da saúde sobre a doença e o ganho incontornável da paz e da segurança em prol da insegurança e violência porque Jesus venceu-a na cruz de calvário em remissão de cada um de nós pecadores. E este anúncio é imprescindível, pois livra-nos do fatalismo e da depressão.
Finalmente, a contribuição fundamental para a saúde social através do incentivo à gratuitidade e ao altruísmo, bem como por meio do anúncio insistente de uma esperança rebelde a todo o enquadramento melancólico e fatalista, proclamado pela igreja é inquestionável e devia ser o mandamento de e para todos.
Portanto, como dizia alguém: “a igreja constitui sinal e metáfora da nova humanidade redimida que tanto necessitamos de emergir”. Este sim deve ser tomado como ideal no combate à violência e que assume como conditio sine qua nom para o desenvolvimento de qualquer país.
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 680, de 10 de Setembro de 2020