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Política

19 de Fevereiro de 1990: Há 30 anos Cabo Verde ensaiou a abertura política

A 19 de Fevereiro de 1990 o então primeiro-ministro, Pedro Pires, anunciava ao país e ao mundo a “abertura política”. Cabo Verde entraria, poucas semanas depois, numa vertigem de acontecimentos que passaria pelas primeiras eleições livres, a 13 de Janeiro de 1991, culminando, em Setembro de 1992, na aprovação da actual Constituição da República. Trinta anos depois, A NAÇÃO regressa a esse momento da história de Cabo Verde. 
Esta quarta-feira, 19 de Fevereiro de 2020, completaram-se os 30 anos do anúncio da “abertura política” em Cabo Verde. Depois de dias de debate interno, com algumas fugas de informação pelo meio, o Conselho Nacional do PAICV, então força política dirigente da sociedade e do Estado, como dizia a Constituição de 1980, decidiu proceder à abertura do regime, permitindo que “grupos de cidadãos” pudessem, doravante, concorrer às eleições. 
II República 
A declaração, feita pelo então primeiro-ministro e secretário-geral adjunto do PAICV, Pedro Pires, acabaria por desencadear uma alteração política negociada entre o partido no poder e a oposição emergente. Em pouco tempo morria a I República, de natureza monopartidária, por isso de partido único, e nascia a II República, onde os partidos políticos passaram a existir, normalmente. 
Com efeito, o surgimento em Março daquele que viria a ser o Movimento para a Democracia (MpD), a revisão da Constituição em Setembro, a aprovação da lei dos partidos políticos e da lei eleitoral, irá culminar nas eleições livres de 13 de Janeiro de 1991, vencidas de forma expressiva pelo MpD. Este ciclo de mudanças incluiria ainda a eleição, pelo voto directo e universal, também pela primeira vez, do presidente da República, António Mascarenhas Monteiro, contra o antigo líder do PAICV, Aristides Pereira. A aprovação da nova Constituição da República, em Setembro de 1992, acompanhada da mudança dos símbolos nacionais (bandeira e hino) fechará este ciclo de grande mudança política no arquipélago em que o povo, nas ruas, nos comícios e finalmente nas urnas, acabou por ser grande protagonista. 
Contudo, a história começa antes. Após a independência nacional, a 5 de Julho de 1975, a formação e consolidação do novo Estado foi assegurada pelo PAIGC, partido que liderou toda a luta anticolonial, tanto na Guiné como em Cabo Verde. Este partido binacional governou Cabo Verde até 1981, altura em que ocorreu o golpe de Estado em Bissau. Como consequência directa disso, registou-se uma ruptura no interior do partido, dando origem ao PAICV. 
O PAIGC/CV governou Cabo Verde durante 15 anos, de 1975 a 1990, sempre em regime monopartidário, onde não era permitida a existência de outras forças políticas e as chamadas liberdades individuais praticamente não existiam também. Aliás, sendo força política e dirigente da sociedade e do Estado, tudo começava e terminava no PAIGC/CV. Sendo um regime autoritário, não é por acaso que é durante os seus 15 anos de vigência, o país se vê, em vários momentos, confrontado com problemas de direitos humanos. 
Ainda que timidamente, por altura do III Congresso do PAICV, em Novembro de 1988, fica mais ou menos claro que o regime procurava flexibilizar-se através da “extroversão económica”, sem contudo mexer na sua natureza política, monopartidária. Com as alterações no xadrez político mundial e a contestação do partido único em África e no mundo, ocorre em 1990 a abertura política em Cabo Verde, possibilitando o surgimento de novos partidos políticos, entre os quais o Movimento para a Democracia (MpD), liderado por Carlos Veiga, então deputado nacional eleito pelas listas do PAICV, em 1985. A União Cabo-verdiana Independente e Democrática (UCID), surgida na diáspora desde 1978, não conseguiu organizar-se internamente a tempo de participar nas eleições de 13 de Janeiro de 1991.  
Uma necessidade  
João Pereira Silva, então ministro do Desenvolvimento Rural e Pescas, tido como um dos liberais do regime, foi um dos protagonistas da luta interna e abertura política anunciada a 19 de Fevereiro de 1990. Como recordou ao A NAÇÃO, o objectivo era aumentar a participação dos cidadãos na vida nacional, “para que houvesse mais progresso, desenvolvimento e melhoria de vida dos cabo-verdianos”. Hoje reconhece que nem todas as ideias que se tinham na altura foram atingidas com a abertura política.
“Isso porque o sistema político com base em partidos políticos fez com que o poder ficasse na mão de uma elite e, consequentemente, a maior parte dos benefícios vão para essa elite”, admite.
Pereira Silva diz também que, na sua época, ele e os seus camaradas estavam conscientes que se não avançassem com a abertura política, as pessoas acabariam por se revoltar. “Há quem ache que nós fomos pressionados por alguns acontecimentos no mundo, como a queda do Muro de Berlim, mas não. As razões da nossa mudança foram, acima de tudo, internas”. 
E justifica: “Desde 1981 que no interior do PAICV havia pessoas pensando na necessidade de uma abertura política e isso veio a acontecer em 1990. Muitos falam que entregámos o poder de bandeja, mas também não, nós cumprimos o nosso dever. Gostaríamos de ter ganho as eleições de 1991, mas as circunstâncias nos levaram a perder. Não porque o povo estava contra nós, foi por outros motivos”.
Enfraquecimento 
Visão diferente tem Adalberto “Betú” Silva, militante do MpD, jovem quadro em 1990, já que economista e funcionário do Banco de Cabo Verde na altura. Para ele, a abertura política foi o culminar de um “processo de enfraquecimento do regime de partido único que, perante factores de ordem interna e externa, acabou por ceder”. 
“A nível interno, a contestação ao regime era cada vez mais acutilante. O contexto internacional era também cada vez mais desfavorável para o regime, desde o começo da Perestroika na União Soviética (em 1985, com Gorbachov), culminando com a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 89, e que acabou por acelerar o desmoronamento do mesmo”, afirma.
Como recorda também, da comunicação de Pedro Pires, a 19 de Fevereiro de 1990, depreendia-se que a intenção era proceder a uma mudança gradual e controlada do regime, admitindo, se tanto, apenas a possibilidade de participação de “grupos de cidadãos” na gestão autárquica no horizonte de cinco anos, mas sem a existência de outros “partidos políticos”. 
Ou seja, sublinha, “a ideia era manter o regime de partido único, numa versão mais ‘soft’”. “Terão calculado por defeito o grau de rejeição do povo na altura e acabaram por perder o controlo da situação. Com o surgimento do MpD, o plano alterou-se completamente e, em menos de um ano, mudaram-se o regime e o poder”, congratula-se Betú Silva.
 
Conhecer as etapas 
Cabo Verde, juntamente com São Tomé e Príncipe, foi um dos primeiros países africanos a iniciar o processo de transição política. E, não menos particular, dos poucos que após isso não regrediu para um novo tipo de autoritarismo. Esta é a opinião da cientista política Roselma Évora, autora do livro “A abertura política e o processo de transição democrática em Cabo Verde”.
Segundo nota aquela investigadora, em África, Cabo Verde é um dos raros casos de transição pacífica, onde a mudança de regime não foi precedida por um clima de instabilidade política, social e económica, como se verificou, por exemplo, no Mali e na Costa do Marfim, só para citar os da nossa sub-região. “Cabo Verde é um caso típico de transição iniciada pela elite autoritária, mas que adquire uma dinâmica diferente com o surgimento da oposição”, observa. 
Trinta anos depois, Roselma Évora diz ser importante conhecer as etapas do processo de abertura política no país que tem várias fases. “Da intenção publicamente manifestada à concretização formal levou algum tempo para a efectiva alteração constitucional que permitiria mudar o tipo de regime político que vigorava em Cabo Verde desde 1975”, diz ao A NAÇÃO. 
Outrossim, segundo explica essa estudiosa, a abertura política num país pode acorrer de múltiplas formas, sendo que há uma tipologia variada de modelos de transição e abertura política. Então, é relevante conhecer as etapas do processo, o significado das etapas e a cronologia dos eventos que antecedem as grandes mudanças e transformações políticas.
Contudo, na opinião de Évora, em Cabo Verde “fixamo-nos nas grandes datas e os eventos prévios não são lembrados”. A seu ver, “os pequenos passos têm também força importante na concretização de grandes momentos e eventos e que, por isso, importa conhecer e saber das etapas e do que antecedeu cada grande momento”. 
Documentos e fontes primárias indicam que havia uma indecisão interna no partido dirigente sobre a continuidade do modelo do regime político bem antes do anúncio público de 19 Fevereiro de 1990 e sinais para uma abertura gradual já na década de 80. A pergunta que colocamos é: a transição política em Cabo Verde foi tardia ou não?  
“Podia ter sido antes, mas também se tivesse sido podemos questionar se os resultados não seriam diferentes. Se repararmos, por exemplo, os outros países africanos que fizeram abertura política praticamente no mesmo período que Cabo Verde, verificamos que em um bom número deles não houve alternância política. Houve uma continuidade dos ex-partidos únicos no novo regime político, ao passo que em Cabo Verde tivemos alternância, uma dimensão importante para a democracia”, responde Roselma Évora. 
ACN
(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 651, de 20 de Fevereiro de 2020)

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