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Mundo 2023: esperar melhor e preparar-se para eventual estagflação e mais fome assoladora

Por: João Serra*

O ano que se inicia não se afigura radioso: as nuvens da guerra continuam a adensar-se na Europa e a inflação galopante teima em asfixiar o dia-a-dia das pessoas, pelo que a esperança num ano melhor que o ora findo não parece fácil de alcançar.

O mundo está confrontado com uma perspetiva económica muito difícil. Segundo os especialistas, caso não haja uma recessão económica numa boa parte de países, haverá, certamente, um abrandamento significativo do crescimento da economia mundial em 2023, bem como uma inflação ainda elevada, embora em declínio, mormente em alguns países desenvolvidos.

Por outro, a situação global da fome é sombria e lúgubre. A sobreposição das crises que o mundo enfrenta está a revelar as falhas dos sistemas alimentares, dos globais aos locais, e a realçar a vulnerabilidade das populações de todo o mundo em relação à fome.

A guerra na Ucrânia veio aumentar ainda mais os preços globais dos alimentos, de combustíveis e fertilizantes e tem o potencial de agravar ainda mais a fome em 2023 e nos anos seguintes, sustentam os especialistas na matéria.

De um modo geral, em 2023, os riscos continuam a ser significativos. Nestes tempos difíceis e incertos, a política tem, mais uma vez, um papel crucial a desempenhar. Nesse âmbito, um bem calibrado aperto da política monetária é essencial para combater a inflação e o apoio da política orçamental deve tornar-se mais direcionado e temporário.

Os países devem acelerar o investimento, nomeadamente em fontes e tecnologias limpas de energia. Isso será crucial para diversificar o abastecimento energético e garantir a segurança energética.

Além disso, uma prioridade reforçada nas reformas estruturais permitirá aos decisores políticos promover o emprego e a produtividade, bem como fazer com que o crescimento funcione para todos, inclusive para o combate à pobreza e à fome.

Já as possíveis soluções para o problema da fome, mormente nos países em desenvolvimento, passam, por um lado, pela transformação dos sistemas alimentares e, por outro lado, pela importância do papel que os governos locais desempenham nas suas regiões, por meio de práticas de gestão de recursos naturais e métodos agrícolas e pecuários adequados.

Quanto a Cabo Verde, estando mais afastado da zona de conflito, com menos relações comerciais com os países em guerra, estaria menos vulnerável, não fossem dois problemas estruturais, além de ser uma pequena economia aberta e fortemente impactada pela conjuntura económica internacional.

Por um lado, somos um país muito dependente da importação dos combustíveis e da comida, pelo que sofremos mais com a subida do preço da energia e dos bens alimentares.

Por outro lado, temos uma economia muito pouco diversificada e, demasiadamente, dependente do turismo e, consequentemente, da situação económica e social dos países emissores de turistas, nomeadamente o Reino Unido – o principal mercado emissor.

Para além disso, já não podemos esperar contributos extraordinários do turismo em 2023, porque este, nas condições existentes no país, quase já concluiu o seu processo de recuperação da crise pandémica, mais cedo do que se esperava.

Num contexto internacional em deterioração, que poderá passar por uma recessão no Reino Unido e uma forte contração económica na Zona Euro (ZE), Cabo Verde poderá estar entre os países mais afetados. O melhor que se consegue antever para o país é que a queda do PIB seja moderada e não por muito tempo, e a inflação inverta a sua tendência altista o mais depressa possível, regressando aos valores próximos da taxa neutral da economia (2%).

I. Risco elevado de estagflação global em 2023

Confrontada com uma série de desafios sem precedentes, a economia mundial poderá enfrentar uma forte deterioração do seu crescimento em 2023, segundo as previsões de vários organismos internacionais especializados na matéria. Para estes, esse panorama só melhorará – e, mesmo assim, ligeiramente – depois de 2023 quando, previsivelmente, a normalização das cadeias de fornecimento e das atuais medidas dos bancos centrais contribuam para aliviar as pressões sobre os preços.

Na verdade, o principal desafio com que se defrontam as diferentes regiões do mundo é a evolução dos preços, cujos efeitos são globais, impactando, negativamente, o crescimento económico e as condições de vida das pessoas, sobretudo das com baixos níveis de rendimento.

Um dos mais recentes “Economic Outlook” é o divulgado, já praticamente no final do  ano transato (20 de dezembro), pela Crédito y Caución – uma instituição líder em seguros de crédito interno e de crédito à exportação, em Espanha.

Nesse “Economic Outlook”, analisam-se os problemas económicos com que se defrontam as diferentes regiões do mundo.

Segundo consta da análise feita, a ameaça da estagflação (a elevada inflação aliada à estagnação económica) paira sobre muitas economias à medida que se agrava a crise do custo de vida associada à volatilidade da subida de preços dos alimentos e da energia, a guerra na Ucrânia e os efeitos atuais da pandemia. Prevê-se que o crescimento do PIB mundial reduza até 1,2% em 2023, face aos 2,9% de 2022.

O relatório prevê que a estagflação se dissipe gradualmente em 2023 à medida que a inflação baixe e que o crescimento mundial recupere novamente até aos 2,9% em 2024, especialmente se começarem a diminuir os efeitos económicos da guerra na Ucrânia.

O ano de 2023 será provavelmente difícil tanto para os mercados emergentes como para as economias avançadas. A Crédito y Caución prevê que o crescimento do PIB nos mercados emergentes desacelere de 3,6% em 2022 para 2,9% em 2023. Para aqueles mercados com uma elevada dívida pública ou privada, a evolução das taxas de juro será um desafio adicional. Muitos mercados avançados também enfrentam uma deterioração do crescimento em 2023, com previsões de uma ligeira recessão, de -0,1%, para a ZE e uma contração económica de 0,4% para os Estados Unidos da América.

As previsões do “Economic Outlook” estão envoltas num nível de incerteza pouco habitual. Um risco importante é a persistência de uma inflação elevada, impulsionada por novas perturbações nos preços da energia e por uma espiral dos preços salariais. Tal situação levaria os bancos centrais a tomar medidas mais drásticas para travar a inflação, com graves consequências para o crescimento. De facto, nesse cenário, o crescimento do PIB mundial em 2023 reduzir-se-ia para metade, até 0,6%.

Para Cabo Verde interessa, sobretudo, o que vai acontecer com a economia dos seus dois principais parceiros económicos – a ZE e o Reino Unido.

Zona Euro: uma recessão relativamente curta e superficial e um crescimento de 0,5%, prevê o Eurosistema

A 15 de dezembro, aquando do anúncio do Banco Central Europeu (BCE) que iria aumentar em 50 pontos base as suas três taxas de juro diretoras (o quarto aumento consecutivo em 2022), este regulador bancário confirmou que a economia da ZE poderá ter-se contraído no último trimestre do ano passado e no primeiro trimestre de 2023, e que está previsto um crescimento de 0,5% neste ano.

O BCE aponta como causas da contração da economia a crise energética, elevada incerteza, enfraquecimento da atividade económica global e condições de financiamento mais restritivas.

No entanto, de acordo com as últimas projeções dos especialistas do Eurosistema, “uma recessão seria relativamente curta e superficial. De todo o modo, espera-se que o crescimento seja moderado em 2023.”

A curto prazo, os especialistas do Eurosistema apontam para um crescimento da economia da ZE em 3,4% em 2022, 0,5% em 2023, 1,9% em 2024 e 1,8% em 2025.

Com a decisão de 15 de dezembro passado, o BCE considera que a manutenção das taxas de juros em níveis restritivos “reduzirá com o tempo a inflação ao amortecer a demanda e também protegerá contra o risco de uma mudança persistente para cima nas expectativas de inflação”.

Reino Unido (o principal mercado emissor de turistas para Cabo Verde): fica em recessão até 2024, estima o Banco de Inglaterra (BoE)

De acordo com as perspetivas económicas do BoE, divulgadas a 03 de novembro, o Reino Unido terá entrado em recessão no último trimestre e a inflação terá ascendido aos 11% nos últimos três meses de 2022.

O BoE espera uma recessão “prolongada” e que a inflação “permaneça elevada, acima de 10%” no curto-prazo, pode ler-se na previsão económica divulgada, onde também consta o anúncio de subida das taxas de juro em 75 pontos base.

“É esperado que a economia do Reino Unido permaneça em recessão durante 2023 e no primeiro semestre de 2024 e o PIB apenas deve recuperar depois”, revela o “Outlook” do banco central.

A inflação terá ascendido aos 11% no quarto trimestre de 2022, mas a partir de 2023 a autoridade monetária espera que a inflação diminua consideravelmente, embora com “pressões inflacionistas ainda elevadas” e que atinja os 2% desejados entre 2024 e 2025.

Relativamente ao PIB, este terá recuado cerca de 0,75% no segundo semestre de 2022 e deve registar uma queda até ao primeiro semestre de 2024, voltando a um crescimento de 0,75%, apenas no quarto trimestre de 2025.

“Embora se considere que exista atualmente uma margem significativa de excesso na procura, a fraqueza contínua das despesas vai levar a um crescente abrandamento económico no primeiro semestre de 2023, incluindo um aumento do desemprego”, indica o documento. O BoE prevê, assim, que a taxa de desemprego ascenda a 6,5% no quarto trimestre de 2025, o valor mais elevado desde a crise financeira.

O Banco de Inglaterra subiu, no dia 03 de novembro do ano transato, as taxas de juro em 75 pontos base, a maior subida em 33 anos, colocando os juros diretores em 3%.

II. Perspetiva da fome no mundo continua sombria e lúgubre em 2023

Em 2022, a fome continuou crescendo no mundo, e especialistas classificam o problema como “sombrio e lúgubre”. A sobreposição das crises que o mundo enfrenta está a revelar as falhas dos sistemas alimentares, dos globais aos locais, e a realçar a vulnerabilidade das populações de todo o mundo em relação à fome.

Com efeito, segundo um relatório do Índice Global da Fome (IGF), de autoria da organização não governamental alemã Welthungerhilfe (ajuda mundial para a fome) e citado pela agência noticiosa portuguesa Lusa, “o número de pessoas sem acesso regular a calorias suficientes aumentou de 811 milhões para 828 milhões entre 2021 e 2022, o que representa uma inversão de mais de uma década de progresso no combate à fome”, devido a “uma onda de crises”.

O estudo, divulgado no dia 13 de outubro do ano transato, prevê que “a situação é suscetível de piorar perante a atual onda de crises globais sobrepostas – conflito bélico, alterações climáticas e repercussões económicas da pandemia de Covid-19, além de problemas estruturais – todas elas poderosas potenciadoras de fome.

“A guerra na Ucrânia veio aumentar ainda mais os preços globais dos alimentos, de combustíveis e fertilizantes e tem o potencial de agravar ainda mais a fome em 2023 e nos anos seguintes”, sustentam os especialistas responsáveis pela elaboração do IGF. Estes consideram que “estas crises vêm juntar-se a fatores subjacentes, tais como pobreza, desigualdade, governação inadequada, fracas infraestruturas e baixa produtividade agrícola, que contribuem para a fome e vulnerabilidade crónicas”, vaticinando que “a nível mundial e em muitos países e regiões, os atuais sistemas alimentares são inadequados para enfrentar esses desafios e acabar com a fome.”

Segundo os suprarreferidos especialistas, “sem uma mudança significativa”, existe um potencial de agravamento da situação já em 2023. Na verdade, de acordo com o estudo, “a fome elevada persiste em demasiadas regiões”, os níveis de população que se encontram subnutridos estão a aumentar e não se prevê qualquer melhoria até 2030.

Recorde-se que um baixo nível de fome até 2030 é o objetivo global de erradicação da fome, um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda de 2030 estabelecidos pela ONU.

O sul da Ásia é a região que apresenta os valores mais elevados e a África subsaariana a segunda região com os níveis de fome mais graves, com a subalimentação e a taxa de mortalidade infantil “mais altas do que qualquer outra região do mundo”, nos termos do relatório. Este considera que também em regiões como a África oriental, a Ásia ocidental e o norte de África “os valores são preocupantes”.

O sul asiático é também a região com maior taxa de atraso no crescimento infantil (raquitismo) e, “de longe, a maior taxa de emaciação infantil do que qualquer outra região do mundo”.

Emaciação infantil significa percentagem de crianças com menos de cinco anos com baixo peso para a sua altura, o que é reflexo de subnutrição aguda, explica o IGF no relatório, apontando este como um dos quatro indicadores em que se baseia como instrumento “para medir e acompanhar de forma abrangente a fome a nível global, regional e nacional ao longo dos últimos anos e décadas”.

Os outros três indicadores que o IGF utiliza na sua fórmula para captar “a natureza multidimensional da fome” são a subalimentação, o atraso no crescimento infantil (que reflete subnutrição crónica) e a taxa de mortalidade infantil de crianças com menos de cinco anos.

O IGF apresenta uma escala da fome que inclui os níveis “baixo, moderado, grave, alarmante e extremamente alarmante”, apresentada numa pontuação de ordem crescente em função da gravidade da subnutrição.

Para o relatório do Índice Global de Fome de 2022, foram avaliados dados de 136 países. De entre estes, havia dados suficientes para calcular a pontuação de IGF de 2022 e classificar 121 países.

O IGF identificou 49 países com um nível de fome baixo, moderado em 36 países, grave em 35 países, alarmante em nove países.

Dos cinco países que estão num nível alarmante de fome, quatro estão no continente africano (Chade, República Centro-Africana, República Democrática do Congo e Madagáscar) e um na Ásia (Iémen). O IGF coloca quatro países num nível provisoriamente alarmante – mais três países africanos (Burundi, a Somália, o Sudão do Sul) e um asiático (Síria) – e 35 países num nível grave de fome, a maioria dos quais também africanos, além de Timor-Leste, Haiti, Índia e Paquistão, Papua-Nova Guiné, Coreia do Norte e Afeganistão.

Entre os Países Africanos de Língua Portuguesa, Moçambique aparece com um nível sério de fome, ainda que não tenha apresentado dados suficientes, sendo-lhe atribuído um intervalo de 20 a 34,9 pontos. A Guiné-Bissau também aparece com um nível grave de fome (30,8), assim como Angola (25,9), enquanto Cabo Verde apresenta um nível “moderado de fome” (11,8).

As possíveis soluções apontadas no relatório passam pela transformação dos sistemas alimentares, bem como pela importância do papel que os Governos locais desempenham nas suas regiões.

“Num sistema alimentar global que ficou aquém do fim sustentável da fome, é importante olhar para a governação dos sistemas alimentares a nível local, onde os cidadãos estão a encontrar formas inovadoras de responsabilizar os decisores pela resolução do problema da insegurança alimentar e nutricional”, refere uma das especialistas, Danielle Resnick, num ensaio incluído no relatório do IGF do ano transato.

“Embora a transformação dos sistemas alimentares requeira, em última análise, intervenções a múltiplos níveis, justifica-se uma maior concentração na governação local dos sistemas alimentares”, porque “as práticas de gestão dos recursos naturais, os métodos agrícolas e pecuários e as preferências alimentares assentam frequentemente nas tradições culturais locais, experiências históricas, e condições agroecológicas”, defende Resnick.

Termino com a esperança da não concretização do receio do FMI de que “o pior ainda está por vir em 2023”, desejando que este ano traga a todos os decisores políticos o discernimento e a coragem necessária para mudar o atual estado das coisas.

Que 2023 seja melhor que 2022!

Praia, 02 de janeiro de 2023

*(Doutor em Economia)

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 801, de 05 de Janeiro de 2023

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