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Opinião

O Discurso da dívida

Jean Ziegler publicou recentemente um opúsculo intitulado o Discurso Da Dívida, de Thamas Sankara, que este revolucionário, herdeiro das utopias dos anos sessenta, cristão em país de maioria muçulmana, admirador de Lumumba e Che Guevara e um apaixonado pela justiça social, proferiu na reunião da OUA em Adis Abeba, em Julho de 1987, discurso que levou à sua eliminação física poucos meses depois, por ter contestado a origem da dívida pelos países mais pobres e proposto a sua anulação.
Até há bem pouco tempo, a maneira de subjugar os países antes colonizados, de independência recente, pela força das armas – golpes de Estado preparados e orientados pelos ocidentais, assassinatos dos seus líderes mais carismáticos e honestos, como aconteceu, por exemplo, com Moumé, dos Camarões, Lumumba, Ben Barka, Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Samora Machel, Boganda, entre outros. Vítimas de golpes de Estado preparados pelas ex-metrópoles foram, Modibo Keita, N´Krumah, Sylvanus OLympio (este assassinado pelo sargento Eyedema, que veio a ser presidente da república com a patente de general), Sankara e j´en passe.
A grande maioria dos governantes africanos pós-independência dos países francófonos era da confiança absoluta da ex-metrópole e permaneceram nos seus postos durante décadas sob protecção desta, enquanto iam defendendo os interesses da antiga metrópole. Quando, ou se manifestassem alguma veleidade nacionalista de defesa dos interesses dos seus países – o que aconteceu com Modibo Keita, N´Krumah, Olympio, Lumumba, Sankara -, um golpe de Estado punha fim à sua governação, por vezes, com eliminação física.
A partir de certa altura, houve mudança no modo de sujeição e dominação dos países subdesenvolvidos com riquezas em matérias-primas. O FMI, BM e a OMC passaram a actuar como avalizadores das decisões das potências ocidentais no modo de garantirem a cobrança dos empréstimos, através do famigerado ajustamento estrutural desses países (privatização máxima de serviços públicos rentáveis e abertura da economia nacional às multinacionais predadoras); desse modo os países exploradores tinham garantia de recuperação dos seus empréstimos a juros proibitivos e investimentos e continuar a comprar a preços aviltantes as matérias-primas de que necessitavam, aumentando a dívida, bastas vezes contraídas antes da independência ou por governos corruptos, cujos altos governantes transferem, por facilidades concedidas por mediadores do Ocidente, esses empréstimos e produtos de corrupção para bancos europeus e americanos, funcionando a dívida como uma autêntica arma de destruição massiva da economia do país. A dívida passou a substituir os golpes de Estado e assassinatos anteriores. O seu não pagamento implica a interrupção de toda a “ajuda” e empréstimos internacionais.
De resto, a nova política neoliberal não se limita aos nossos países; temos, actualmente, devido à subalternização dos governos à mafia financeira internacional, os exemplos de Portugal, Grécia, Itália e Espanha que sofrem os rigores dos ajustamentos estruturais e da austeridade com sofrimento enorme das suas populações, obviamente muito menor do que o das nossas populações cronicamente vulneráveis.
O Presidente Thomas Sankara, cujo governo, de 1983 a 1987, iniciou reformas agrícolas, fez baixar a mortalidade infantil, promoveu a Educação, a Saúde, criou um espírito novo no povo, que levou à mudança do nome do país de Alto Volta para Burkina Faso (terra dos homens íntegros), tornando-o auto-suficiente de modo a libertá-lo da tutela das grandes potencias, fez um discurso memorável na reunião da OUA em Adis Abeba, desmascarando a exploração ocidental e a tibieza de certos governantes africanos, fazendo propostas para a anulação das dívidas dos países mais pobres, justificando essa anulação com os benefícios que os colonizadores tiveram e tinham com a exploração das riquezas naturais que compram a preços determinados por eles próprios em nosso prejuízo, contabilizando a dívida de sangue, da luta dos africanos em solo europeu contra o nazismo. Pedia que essa decisão fosse tomada solidariamente em acção conjunta da OUA, dado que, se fosse somente ele a fazê-lo, – a sua premonição – seguramente que não poderia comparecer à próxima reunião da OUA porque o eliminariam.
Esmiuçou a origem da dívida: a maioria, do período colonial, portanto da responsabilidade do colonizador, outra parte, do período neocolonial, em que o colonizador se transformou em assistente técnico, a que ele preferiu denominar de “assassino técnico”, por terem levado os países a contraírem dívidas por períodos de cinquenta a sessenta anos, comprometendo a vida de populações e gerações inteiras durante décadas. A dívida actual, martelou Sankara, é controlada e dominada pelo capitalismo com normas que nos são totalmente estranhas e nos tornam escravos financeiros.
Em boa verdade a dívida não era e continua sendo não pagável, como bem afirmara o Primeiro-Ministro da Noruega e o Presidente H. Boigni; só poderia sê-lo noutros prazos, com menos juros, após o perdão de grande parte dela e eliminação da parte chamada dívida odiosa, como fez, recentemente, o Presidente do Equador, Correa, depois de ter mandado fazer uma auditoria da dívida do país e tornado público o relatório dessa auditoria que considerou 70% dela ilegal e inconstitucional beneficiando grandes empresas internacionais e funcionários corruptos. O Estado dispôs-se a pagar os 30% não fraudulentos e expulsou o representante da FMI, que ameaçava o país com sanções, o qual passou a trabalhar na Grécia (para mais precisões ver o site www.video.com/24949247). O conceito de dívida odiosa não era original porque fora criado pelos EUA, no século XVIII, e utilizado para não pagar a dívida exigida pela Inglaterra e Espanha. Mais recentemente, o conceito foi utilizado pelo primeiro governo pós-Saddam para não pagar as dívidas contraídas por esse ditador, mas evitou-se falar muito do assunto, não fosse a moda pegar contra os EUA e a UE.
Sankara não o disse, mas a dívida poderia ser paga com as colossais fortunas depositadas em bancos europeus e americanos por governantes cleptocratas (Mobutu, HIssain Habré, S. Abacha, Bongo, Teodoro Obiang, Idi Amin, Negus da Etiópia, Ben Ali, Lansana Conté, Kolingba, Moussa Traoré, Eyedema, Eduardo dos Santos, entre outros, fortunas depositadas sob códigos, que se perdem em benefício dos bancos quando o seu detentor morre inesperadamente sem revelar o segredo), fortunas reconhecidamente roubadas do erário público, dos empréstimos e da corrupção, medida que poderia levar os governantes a depositarem a sua fortuna em bancos nacionais, com a vantagem de estes passarem a ter liquidez para investimentos na criação de infraestruturas nacionais.
Se, na definição dos preços de venda das matérias-primas, houvesse participação dos países africanos, e não fossem – como têm sido e continuam sendo – decididos arbitrariamente pelo comprador, certamente que a situação económica desses países seria diferente porque haveria fundos para investir no desenvolvimento e melhoria do nível de vida das populações.
Três meses após esse discurso de Sankara, ele foi assassinado por elementos do exército, na companhia de onze dos seus colaboradores mais directos e honestos. Tinha cerca de 38 anos de idade! Blaise Compaoré, que a maioria das fontes disponíveis considera como mentor do seu assassínio, é, desde essa data, o Presidente de Burkina Faso, como esclarece Jean Ziegler.
Infelizmente, as forças armadas africanas, exceptuando as dos países que lutaram com armas nas mãos pela sua independência, como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Ruanda, Uganda, Tchad, Argélia, pouco valem, e uma dúzia de mercenários europeus (na velha tradição francesa de golpes de Estado, sob o comando de Bob Denard) põem-nas em fuga. A sua “valentia” só se tem manifestado face a populações civis desarmadas. Veja-se o que fazem as forças armadas da Nigéria perante o rapto, por milícias islâmicas (Boko Haram), de 200 raparigas de uma escola, as do Mali e da República Centro-Africana. Como escreveu Sankara no seu diário íntimo, “um militar sem formação política é um criminoso em potência”.
 
Arsénio Fermino de Pina
Pediatra e sócio honorário da Adeco

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