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Há 25 anos caía o muro de Berlim e Cabo Verde não ficou indiferente

Há 25 anos, com o mundo dividido em dois blocos ideológicos e militares, caía o muro de Berlim. E com ele o que parecia impossível tornou-se possível. Mesmo em Cabo Verde. Por José Vicente Lopes
Consequência da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o muro de Berlim, que dividia a Alemanha ao meio (a ocidente a República Federal da Alemanha, RFA, e a leste a República Democrática Alemã, RDA), foi construído por ordem das autoridades soviéticas para evitar que massas humanas no Leste continuassem a fugir para o Ocidente capitalista.
O mundo viu-se assim dividido em dois blocos ideológicos e militares antagónicos, o Ocidente capitalista e o Leste comunista. No Ocidente as pessoas podiam circular livremente, viver a sua vida como lhes desse na real gana; e no bloco soviético era o contrário. Tudo era controlado, até uma simples máquina de escrever.
Esse “statu quo” perduraria por muitos anos até que, pouco a pouco, o império soviético (URSS) começou a dar mostras de se desfazer por dentro. Um desses sinais foi o surgimento, na Polónia, em 1980, do movimento sindical Solidariedade, encabeçado por Lech Walessa, duramente reprimido pela junta militar encabeçada pelo general Jaruzelski que teve de assumir o poder.
Proibido e banido, Walessa teria de esperar, primeiro, pelo surgimento de Mikhail Gorbachov, em 1985, como líder da União Soviética e depois pelo agravamento dos níveis sociais e económicos em todo o chamado bloco soviético.
Sem capacidade de responder aos anseios das populações dos vários países do lado de lá da “cortina de ferro”, a cadeia começou a romper-se. É assim que, em finais de Novembro de 1989, hordas humanas vindas da Hungria e outros países vizinhos da Alemanha oriental começaram a rumar para o Ocidente, rompendo as fronteiras. A RDA, que passava também pelo mesmo tipo de crise, teve também ela de se render à evidência. Dos dois lados do muro populares começaram a juntar-se e a deitá-lo. As mudanças prosseguiriam entretanto, afectando a própria URSS. Gorbachov seria afastado do poder e com ele o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, proclamada por Vladmir Lenine em 1917.
Henrique Oliveira, “o fim da ditadura”
Henrique “Djick” Oliveira, 71 anos, professor de filosofia, política, história, entre outras disciplinas, no único liceu da Praia ao tempo – Domingos Ramos – e hoje aposentando, recorda que foi com espanto que ouviu dizer que o muro de Berlim tinha sido rompido e começado a ser deitado abaixo por populares.
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“Emocionalmente falando, senti-me aliviado e ao mesmo tempo espantado. Jamais pensei que isso fosse acontecer comigo em vida”, confessa.
Djick diz se ter dado conta da existência do muro, adolescente ainda, através da leitura de “histórias de heroicidade” de pessoas que tudo faziam para fugir da Alemanha oriental, através de túneis, balões, os meios mais mirabolantes, com o claro objectivo de conseguir a liberdade. “Eram leituras que eu tinha através da Riders Digest”, conhecida publicação americana, vista por muitos como um instrumento da guerra fria.
Formado e caldeado pelo ambiente marxista-leninista de Coimbra, Djick confessa que, por muito tempo, duvidou da literatura produzida contra a URSS até cair, enfim, “na real”. Por isso, para ele, a queda do muro de Berlim significava, acima de tudo, “o fim da ditadura, o horizonte da liberdade que se abria, não só para o povo alemão, como também para todos os povos europeus que viviam sob aquele tipo de regime. Independentemente disso, do ponto de vista simbólico, aquilo era um muro de silêncio que, de repente, desabou. Às tantas, fiquei até com a impressão que, afinal, a queda foi algo demasiado fácil”.
E em Cabo Verde, qual o impacto que Henrique Oliveira viu de imediato? “Na altura, confesso, não vi qualquer impacto da queda do muro em Cabo Verde. Nós vivemos aqui, ainda hoje, como estando fora do mundo, ou então vivendo no fim do mundo. Hoje, é claro, em termos retrospectivos, tenho uma outra ideia desse grande acontecimento do século, a sua influência em Cabo Verde é evidente e inegável”, conclui.
Corsino Tolentino: “Esperar para ver”
Quem tem a mesma opinião é o diplomata Corsino Tolentino, 67 anos, na altura ministro da Educação e tido como um dos liberais do regime de partido único instalado em Cabo Verde desde 1975 pelo PAIGC/CV. Conforme se recorda, diante de um tal acontecimento, entre os seus pares, a atitude foi “de esperar para ver”.
Corsino Tolentino
Para Tolentino, a queda do muro de Berlim coincide, em Cabo Verde, com uma altura em que o regime do PAICV estava à procura de novos rumos, tendo isso ficado expresso, um ano antes, com o III Congresso desse partido, que consagra o princípio da “extroversão económica”, sem contudo mexer nos alicerces políticos do sistema.
Além disso, acrescenta, “o Leste socialista tinha deixado de funcionar há muito como farol para nós; o que havia aqui era uma inércia ideológica que continuava a nos ligar ao bloco socialista, as ideias nessa altura vinham claramente do Ocidente”.
Olhando para esse passado, agora com a distância dos 25 anos, Corsino Tolentino reconhece que, com a queda do muro, “o nosso desejo de trilhar novos caminhos ganhou uma certa aceleração”.
Logo, prossegue, “a influência da queda do muro de Berlim em Cabo Verde é hoje evidente, tanto assim que, dois ou três meses depois, houve a decisão de se fazer a abertura política, em Fevereiro de 1990; em Setembro do mesmo ano houve a revisão constitucional que pôs termo ao artigo 4, deixando o PAICV de ser a força política e dirigente da sociedade do Estado; e em Janeiro de 1991 houve as primeiras eleições multipartidárias que nós perdemos, passando para a oposição”.
Como analista político, Tolentino acredita que o facto de ter havido em Cabo Verde, na altura, uma “mudança em curso” contribuiu para que, ao contrário de outros países em África, a transição para a democracia acontecesse de forma pacífica.
“Comparativamente a outros países africanos, onde se instituíram ‘conferências nacionais’ logo após à queda do muro de Berlim, o nosso processo foi muito mais tranquilo, e isso não foi por acaso, e não tem somente a ver com a índole dos cabo-verdianos”, acredita.
“Tem a ver”, avança como explicação, “com o facto de o próprio regime ter a consciência de que era preciso mudar para um outro sistema político. Se dúvidas havia, elas ficaram dissipadas com a queda do muro de Berlim”.
Jacinto Santos: “Uma lembrança imemorável”
Jacinto Santos, 58 anos, um dos fundadores do Movimento para a Democracia (MpD), na altura activista social, diz que a queda do muro de Berlim é, para ele, “uma lembrança inesquecível e imemorável”.
Jacinto santos
Tinha estado em 1977-78 em formação sindical na então RDA, e em Berlim sentiu a “separação terrível” que o muro causava às pessoas dos dois países, RFA e RDA. “Vi dramas, vi mulheres, no lado ocidental, a provocarem os guardas do muro”.
Santos recorda que, um ano antes da queda do muro de Berlim, isto é, numa festa na noite de 31 de Dezembro de 1988, depois da música de Luís Morais, ter-se virado para os presentes e dizer-lhes que 1989 seria o ano da Glasnot e Perestroika em Cabo Verde. “Alguns dos presentes acharam que eu tinha bebido, que isso era fruto da euforia, só que eu, já nessa altura, não bebia álcool. Foi, portanto, uma espécie de premonição embora dita em tom de brincadeira”.
O futuro autarca da Praia (1992-2000) revela que a queda do muro de Berlim acontece numa altura em que ele e outros mais companheiros vinham se preparando para concorrer à Câmara Municipal da capital, como “grupo de cidadãos”, no âmbito de uma lei do poder local aprovada em 1988. “A nossa ideia era, a partir dessa brecha, prevista na lei, lançar uma iniciativa de âmbito nacional em prol da democratização do país”, afirma.
Só que, em vez disso, veio a abertura em Fevereiro de 1990 e logo depois, em Abril, o abaixo-assinado, em forma de declaração, que haveria de dar lugar ao MpD, partido que haveria de vencer as primeiras eleições livres e democráticas a 13 de Janeiro de 1991.
“Portanto, é óbvio que a queda do muro de Berlim teve impacto em Cabo Verde, e nem podia ser de outra forma, tendo em conta o impacto desse acontecimento em todo o mundo”, conclui Jacinto Santos, que diz emocionar-se, ainda hoje, quando vê imagens da queda do muro.

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