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Talento

Chiquinho e Baltasar: Marcos da literatura de Cabo Verde

O livro expõe nuances da vida social na primeira metade do século XX. O autor e a obra tornaram-se símbolos de um momento de viragem na literatura cabo-verdiana.
O romance Chiquinho, de Baltasar Lopes da Silva, publicado em 1947, constitui um marco incontornável da moderna literatura de Cabo Verde. O livro divide-se em três partes: “Infância”, “S. Vicente” e “As águas”. Na primeira, o protagonista, Chiquinho, experimenta o novo com a descoberta das letras, ao mesmo tempo que convive com a sua família no meio rural, na casa construída pelo avô, onde nasceu, em São Nicolau.
“Como quem ouve uma melodia muito triste, recordo a casinha em que nasci, no Caleijão. O destino fez-me conhecer casas bem maiores, casas onde parece que habita constantemente o tumulto, mas nenhuma eu trocaria pela nossa morada coberta de telha francesa e emboçada de cal por fora, que meu avô construiu com dinheiro ganho de-riba da água do mar”, recorda o personagem.
Na segunda parte, Chiquinho encontra-se na ilha de S. Vicente, onde continua os seus estudos no liceu, inicia novas amizades, aguça interesses de ordem cívica e literária no Grémio e conhece o seu primeiro amor. A parte final, “As Águas”, marca o seu regresso à ilha natal e o início da sua vida adulta e profissional, tornando-se professor.
“Chiquinho virou soberbo com a prenda que foi buscar em S. Vicente…”, era o que muitos achavam e diziam do rapaz. Por sua vez, não poucas vezes, de regresso a São Nicolau, o protagonista sentia a falta dos companheiros do Grémio: “Queria era ter ali comigo Andrézinho levantando teses sobre a situação humana da minha ilha. Sorria-me ao vê-lo reagindo perante o caso de S. Nicolau, com seu gesto de cortar o ar com a mão direita.”
A seca, com a tragédia dos mortos pela fome, e a emigração são aspectos sociológicos que a obra reflecte. No fim da história, Chiquinho emigra para os Estados Unidos com a esperança de uma vida melhor, paradigma de muitos cabo-verdianos. Não queria continuar no Caleijão “sem eira nem beira”, ou terminar “vendendo petróleo e açúcar numa tasquinha”.
Para o investigador Leão Lopes, Chiquinho é a autobiografia de Baltasar Lopes da Silva, pois “está lá tudo”, é só “descodificar”, incluindo o processo de programação da revista Claridade, de que o escritor foi um dos principais colaboradores.
Chiquinho é considerado por vários críticos a primeira obra genuinamente cabo-verdiana, porquanto traça fielmente a vida no arquipélago na primeira metade do século XX: a ligação à terra e o significado do convívio no seio da família; a descoberta do mundo através das letras; a necessidade de contacto com as ilhas, neste caso, São Vicente, para frequentar o liceu; a emigração como saída para uma vida melhor. Elementos, aguçados pela condição insular, que interferiram de forma decisiva na formatação da identidade do povo das ilhas.
Este clássico da literatura cabo-verdiana já teve várias edições, em Cabo Verde e Portugal, mas encontra-se esgotado há vários anos. Existe o projecto, anunciado há tempos pelo Instituto da Biblioteca Nacional do Livro, de fazer uma reedição especial. A obra já foi editada em francês, italiano, checo e russo.
Margarida Fontes

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